terça-feira, 2 de novembro de 2021

Chassi antigo, roupa nova: Marcopolo Torino Mercedes-Benz O-362 (1989)

Transportar pessoas dentro de uma cidade é um desafio. Afinal de contas, as pessoas que habitam a urbe (e as que moram no entorno, é claro) precisam se movimentar o tempo todo, seja pelo trabalho, lazer, compras, estudo e tantos outros motivos que você puder imaginar. E quanto maior a cidade, mais complexo fica esse problema, evidentemente.

Imagine, então, São Paulo, a capital dos paulistas e que tem muitos mais moradores do que toda Santa Catarina (e recebe, a cada segundo, muita gente das cidades que ficam ao seu entorno)? Não é fácil, aliás, nunca foi, pois desde o começo do século problemas e dificuldades não faltavam. A empresa The São Paulo Tramway, Light & Power, mais conhecida por Light, nunca foi exatamente famosa por ser muito empenhada em prestar serviços de ampla eficiência em toda a cidade, tanto que no final de 1945 já anunciava o seu desinteresse em continuar a explorar o serviço de bondes e coletivos em São Paulo.

E para resolver esse problema, foi criada uma empresa pública, a Companhia Municipal de Transportes Coletivos - CMTC. Instituída pelo Decreto-Lei n. 365, de 10/10/1946, a empresa contava com capital inicial de Cr$ 250.000.000,00 e recebeu autorização em 18/06/1947 para operar. O start foi em 01/07/1947, com a incorporação de todo o material rodante da Light (614 bondes de diversos tipos) e com o reforço de mais 75 bondes (comprados usados de Nova York) e 60 ônibus novos. Mas o público não ficou feliz, pois a tarifa de 20 centavos (vigente desde 1872) foi reajustada para 50 centavos, o que trouxe uma tremenda reação popular, inclusive com depredações e fortes protestos.

A vida seguiu de forma mais amena, mas a CMTC não deixou de crescer: importou 200 ônibus da GM modelo Twin Coach de uma vez só (depois trouxe mais 50, com transmissão automática e suspensão do tipo Torsilastic, maciíssima) no começo da década de 1950 e trouxe Trólebus em boa quantidade. Fabricou carrocerias, montou o primeiro Trólebus nacional, fez cabines para seus caminhões FNM, encarroçou um bonde em um chassi Mercedes-Benz e a partir de 1975 passou a receber os 2.000 (sim, dois mil) ônibus Mercedes-Benz O-362.

Ai está um dos muitos O-362 que a CMTC recebeu a partir de 1975 (foto: acervo de Alexandre Antônio, via revistaportaldoonibus.com

Tudo bem, dois milheiros de coletivos em São Paulo não é lá grande coisa, mas temos de concordar que se trata de uma compra enorme! Para comparar, se nós reunirmos todas as empresas aqui da região da Grande Florianópolis não chegamos a uma frota de nem metade disso, mesmo nos tempos antes da pandemia. Dois mil coletivos de uma vez, convenhamos, se não foi a maior compra de todos os tempos, deve ser uma das maiores.

O monobloco não era exatamente moderno nem potente, mas era relativamente confortável para os passageiros e a manutenção dele dificilmente trazia surpresas ao pessoal da oficina.(foto: Donald Hudson, via revistaportaldoonibus.com)

E os muitos O-362 trabalharam duro na capital paulista, pois o serviço urbano é dos mais severos: no para-e-anda diário, embarque e desembarque entre vários pontos, lotação nem sempre baixa e muitos quilômetros a vencer diariamente, a aplicação severíssima faz com que o veículo sofra bastante e envelheça até precocemente. Aliás, a necessidade de modernização de frota é um aspecto importante e também não é lá muito fácil substituir dois mil carros numa vez só, sobretudo na década de 1980, épocas de inflação totalmente descontrolada e dificuldades generalizadas, mesmo para uma grande empresa pública municipal.

Uma das alternativas de renovação foi o aproveitamento dos O-362, mas como nova roupagem. Sim, já comentamos dia desses que os monoblocos, por essência, não admitem a troca de carroçaria (até porque a estrutura e a plataforma são integradas), mas com um certo trabalho de aproveitamento das vigas da plataforma pode transformá-las em chassi e permitir o encarroçamento, à exemplo do que a Marcopolo fez ao aproveitar antigos monoblocos em novos Torino:

Novinho, o Torino O-362 é apresentado no Complexo Santa Rita (foto: acervo SP Trans)

A mecânica foi remoçada e recebeu uma revisão muito competente, mas quem era mais atento poderia perceber que o Torino cheirando a novo tinha lá um certo ar de nostalgia. Entretanto, em tempos bicudos, a opção de reaproveitar a estrutura de um veículo já defasado em uma carroçaria nova em folha era bastante válida e permitia poupar recursos para outros aspectos operacionais, como a manutenção, por exemplo.

Ainda sem placas, o Torino já fazia linhas para a empresa (foto do acervo de Waldemar Freitas Júnior, via revistaportaldoonibus.com)

A CMTC, antes grande, encolheu de modo significativo em 1994, quando as suas linhas e a sua estrutura foi entregue para diversas empresas que venceram licitações. No ano seguinte, a CMTC se transforma em SP Trans e passa a assumir um papel de controle e fiscalização do transporte paulista. Não há notícia exata sobre os Torino O-362 da empresa, mas é possível imaginar que foram desativados ainda nos primeiros anos de 1990. E se ver um destes por ai, lembre-se do quanto de história um desses interessantes carros têm pra nos contar...

Pequena ficha técnica:

Carroceria: Mercedes-Benz O-362 urbano (1975) e Marcopolo Torino (1988)
Motor: OM-352 (6 cilindros em linha, 5.675 cm³ de cilindrada, ciclo diesel com aspiração natural)
Potência: 130cv a 2.800 rpm (norma DIN)
Torque: 37 mkgf a 2.000 rpm (norma DIN)
Entre-eixos: 5.550mm (original)
Peso bruto total: 11.500kg (original)

PS: As informações históricas a respeito da CMTC foram extraídas do excelente livro "Pequena História dos Transportes Públicos de São Paulo", escrito por Miriam Bettina Paulina Oelsner Lopes e publicado pela empresa em 1985.

Um comentário:

  1. Até não faz tanto tempo que o reencarroçamento foi proibido, ou passou a ser alvo de restrições mais severas.

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