sábado, 6 de janeiro de 2024

Tivemos o chassis Scania BR-110 no Brasil? Sim, e posso provar!

Se na última postagem falei da Citröen - minha predileção automotiva nos tempos de infância -, hoje direi algo sobre a Scania-Vabis (hoje só Scania, mesmo), a fábrica que antes se dedicava ao transporte ferroviário e com o Século XX teve a iniciativa de investir em bicicletas (muito rapidamente), automóveis de passeio (alguns poucos) e veículos utilitários, estes muito mais famosos e que a tornaram mundialmente famosa.

Talvez Freud explique (e tenho a vaga impressão de que ele tudo poderia explicar...), mas posso apostar que a predileção de garoto pela fábrica sueca se deve aos ônibus Scania que via na infância (e já falei de um deles aqui). O urro gutural que lhes era tão peculiar era altamente melódico, sempre corria para vê-los passar pela frente de casa. Se acha exagero, ouça um DS-11 e você saberá do que estou falando...

Deixando os devaneios para lá, fiquei intrigado ao descobrir, tempos atrás, que a Scania chegou a testar no Brasil um chassis com motor traseiro antes do lançamento do BR-115, em abril/1972. Soube vagamente, de começo, que uma das três unidades foi para a Viação Cometa, algo que não me espantou, pois se tratava de renomada frotista daquela empresa de transporte rodoviário e que, cedo ou tarde, teria de substituir os GMC e outros veículos na frota. Mas, fora isto, nada muito concreto. Ai como faz o nosso amigo Juninho Fonseca do excelente blog Maverick na História, fui para as pesquisas.

Aliás, o próprio chassis BR-110, ao que pude apurar, não era exatamente popular. Apesar da vastidão da internet, pouco obtive de concreto sobre esta plataforma, a qual, inclusive, nem sequer foi citada no livro da Scania a comemorar os primeiros cem anos de seus ônibus (Desfile Histórico Ônibus Scania, editada em 1991), que faz parte do nosso miúdo acervo.

O que pude apurar, quando muito, é que a plataforma foi lançada em 1968 e em 1970 foi substituída pelo modelo BR-111; fez mais sucesso no mercado inglês, graças a um acordo firmado com a MCW e lá não deve ter vendido mais de 50 unidades, afora uma ou outra que deve ter rodado em outros países, como este interessante coletivo encarroçado pela argentina Cametal e fotografado em 1971:

Imagem - que parece ser um Ektachrome - de um raro BR-110 extraída do site carinpicture.com

Não consegui informações técnicas precisas sobre o BR-110, nem catálogos ou informações oficiais. A matriz da Scania me atendeu por e-mail com muita cortesia e rapidez, mas eles não puderam me ajudar. Pode ser pelo meu inglês terrível, mas é provável que essa plataforma não teve ter sido exatamente um retumbante sucesso e pouco sobrou pra contar história dela. Continuo as pesquisas, podem cobrar, mas até agora nada pude apurar a respeito desta plataforma. 

Mas algo já posso dizer: ao contrário do que se pode imaginar, a sigla "BR" nada tem a ver com nosso Brasil: o prefixo - disse a Scania no livro acima dito - que o "B" indica que se trata de um chassis para ônibus (bus, em inglês) e o "R" vem da disposição traseira do motor (rear, novamente em inglês). E o 110 veio da combinação da cilindrada do motor (onze litros) e o último a série (0, a primeira). E isso se aplica aos chassis mais recentes, como o BR-115, ônibus com motor na popa de onze litros de cilindrada e com motor de quinta geração de aperfeiçoamento. Simples, né?

Mais simples de descobrir foi que a Scania do Brasil, no ano de 1969, importou da matriz três unidades do chassis BR-110 (que, ao contrário de muitos outros da época, era do tipo buggy, com chassis que se acoplava a uma carroçaria integral, só contava com as vigas da parte da frente e as de trás) e as enviou para a Ciferal a fim de receberem a carroçaria Líder, moderníssima e certamente pronta para receber as alterações para se tornar autoportante.

A edição n. 76 da revista Transporte Moderno (edição de novembro/1969) trouxe as informações muito interessantes sobre o trio de novidades: contava com motor de 202cv - de aspiração natural e montado transversalmente, o mesmo motor do caminhão L-110 lançado em 1968 -, suspensão pneumática integral, embreagem com acionamento pneumático e hidráulico combinado e outros detalhes que tornaram esse trio de Ciferal Líder altamente desejável e moderno:


Até pelo que pude apurar, nada veio além das três unidades. Nenhuma parece ter sobrevivido aos dias atuais, mas a gente pode estimar, com razoável grau de certeza, quais foram as empresas que adquiriram duas unidades, além da terceira. 

Uma delas, adiantei acima, foi encaminhada para a Viação Cometa e lá recebeu o prefixo 2014; um dos entusiastas mais destacados da empresa - Wilson Roberto Degressi Míccoli - disse em comentário no site Ônibus Brasil que o veículo da Cometa rodava na linha São Paulo - Rio de Janeiro e no final de sua vida útil foi vendido para uma empresa paulista, sem notícias do paradeiro mais atual, a não ser que muito provavelmente recebeu turbocompressor, upgrade bastante comum na época:

A imagem, provavelmente de 1970 (vide a placa de experiência sem letras, pré-1971), é do blog Classical Buses.

O segundo coletivo com chassis BR-110 foi vendido para a Penha e recebeu o prefixo 1304; naquele ano de 1970 o carro chegou a estampar um anúncio da viação publicado na revista Manchete, era o flagship da empresa, orgulhosa de seus muitos quilômetros rodados por dia:


Seguramente ele foi vendido antes de 1982, pois há registo deste veículo em uma outra empresa, também do Paraná. O curioso é que a nova dona - a Rainha Turismo, de Curitiba - providenciou a troca do propulsor traseiro por um dianteiro, também Scania, executando sérias modificações no chassis e na carroçaria. Por iniciativa própria, transformou o BR-110 em B-110, por assim dizer...

Não se trata de algo inédito, mas de difícil execução e adaptação, talvez por sofrer alguma dificuldade na reposição de peças específicas do chassis BR-110, a nova dona tratou de aplicar um motor dianteiro e rodou com ele alguns anos, conforme se pode ver da imagem tomada por Donald Hudson no ano de 1982 e publicada no site Ônibus Brasil:

Não se sabe o paradeiro do Ciferal de chapas CP-5973/PR, provavelmente foi sucateado antes da última década do Século XX.

O último BR-110 foi parar na Empresa Unida, de Minas Gerais: não se sabe se ela o comprou usado depois de testes e demonstrações da Scania - e há uma certa controvérsia se tal unidade veio usada da Cometa, apesar de se ter informação fiável de que não é o mesmo veículo -, mas é fato que esse chassis rodou pela empresa nos anos 70, como a imagem, publicada no antigo site Ponto de Ônibus e retratada por Rodrigo Mattar em seu blog, está a indicar:
Sei que a postagem é magra, gostaria te ter mais algo de inédito além da reportagem da revista Transporte Moderno, mas foi o que consegui espremer de dados depois de mais de um ano de pesquisas. Seguramente, nenhum BR-110 sobreviveu aos dias atuais (nem mesmo a unidade que rodou na Penha e ganhou motor dianteiro), o que é uma pena. De todo modo, o legado da experiência da Scania no final de 1969 teve frutos com o lançamento do BR-115 já em 1972, cuja evolução chega até os muito atuais e tecnológicos chassis Euro 6, nada poluentes e altamente silenciosos. Não urram como os antigos, mas é a vida...