A ideia deste espaço é falar sobre a cultura automotiva - e dentre os automotores, temos os ônibus. E apesar de o blog se dedicar mais aos automóveis (por maior afinidade e conhecimento, reconheço), é hora da gente começar a ter conversas sobre os coletivos, a começar sobre uma prática muito antiga e até interessante: o re-encarroçamento (1).
O nome até pode sugerir algo complicado, mas é um processo singelo: depois de anos de duros anos de serviços intensos prestados em péssimas estradas, a carroçaria de um ônibus geralmente apresenta diversos desgastes e eventualmente defeitos (além da natural defasagem tecnologia em termos de conforto e segurança), mas o chassi poderia talvez aguentar mais tempo de estrada.
A solução de comprar um ônibus totalmente novo era (e ainda é) bastante dispendiosa - sobretudo em tempos de financiamentos menos generosos do que os atuais -, e a solução empregada por muitas empresas (senão quase todas) era a de reaproveitar a plataforma usada em bom estado para instalar uma carroceria nova.
Hoje temos sérias restrições à prática: além da necessidade constante de reduzir níveis de poluição e ruído, a tecnologia avança em passos largos, ao ponto de o custo-benefício operacional de chassi de 20 anos atrás nem sempre ser dos mais atrativos se comparado aos mais atuais. E o público em geral é bem mais exigente: normalmente ninguém ficaria feliz em andar naquele coletivo com cheiro de novo e barulho de máquina antiga...
Entretanto, em tempos mais idos - e isso falo até da primeira década do milênio atual- a prática era bem aceitável, à exemplo do primeiro dos coletivos "renovados" que trataremos neste espaço, o carro 2214 da Viação Cometa S/A, um interessante Ciferal Líder com chassi GM OD-210:
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A imagem é do acervo do fã clube da empresa, via pezaocometa.blogspot.com |
Quem embarcou no coletivo em 1969 até poderia ter pensado que o carro era integralmente novo, mas a unidade - assim como outras deste mesmo lote - era apenas "meio inédita", porque o chassi era o já conhecido GM ODC-210 (código que significa Overseas Diesel Chassis, com 210 polegadas de entre-eixos), produzido no Brasil entre os anos de 1951 até 1955.
Na época, a General Motors do Brasil se valeu do moderníssimo ODC-210 urbano para lançar a correspondente versão rodoviária, até para atender a crescente demanda de coletivos no pós-guerra. Equipado com o interessante motor 4-71 (ciclo dois tempos, movido a diesel) e transmissão de acionamento mecânico de quatro velocidades, o chassi era vestido pela própria GMB, que executava a carroçaria integral em sua linha de montagem, conceito muito moderno e que vendeu bem naqueles tempos, inclusive para a Viação Cometa:
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Não se sabe se o exemplar acima - o carro 649 - vestiu outra roupa, mas, originalmente, os GMC ODC-210 da empresa eram assim (fonte:busontheroad.net) |
O tempo é inexorável, e mesmo um GMC bem construído e mantido com todos os cuidados mecânicos acaba por envelhecer e se tornar obsoleto, até mesmo velho. Daí o motivo de a empresa, em 1970, ter recolhido os seus 70 GMC ODC (à época alocados na linha São Paulo - Campinas) para substituí-los imediatamente por 50 Ciferal Líder de chassi Scania-Vabis B76, à época muito modernos e potentes. Mas ainda não era o fim dos ODC, pois foram encaminhados para a mesma Ciferal para uma importante mudança.
Na ocasião, os 70 ODC foram desmontados e transformados em 35 chassis encarroçados pela Ciferal modelo Líder - os quais receberam os prefixos de 2201 até 2235, estes já em 1971 entregues e prontamente esclados para a linha São Paulo - Jundiaí. O interessante é que as plataformas aproveitadas receberam o sistema de direção hidráulica à época usada pela Scania e a caixa de câmbio empregada nos Mercedes-Benz O-326 (com cinco velocidades, todas sincronizadas), dois upgrades dos mais desejáveis.
E não foi só isso: o entre-eixos do veterano ODC-210 foi ampliado ligeiramente e a porção traseira do chassi foi esticada para comportar uma unidade motriz maior do que a original (talvez para lá instalar um Mercedes-Benz OM-326 ou um Scania-Vabis D11, ambos com seis cilindros), mas os Ciferal Lider re-encarroçados jamais receberam o repotenciamento.
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O carro é outro, mas é idêntico ao 2214: notem as aberturas para a ventilação do motor traseiro (fonte: pezaocometa.blogspot.com) |
Batizada pela empresa como "Jumbo G", a série de modelos idênticos ao carro 2214 rodou até 1975, ocasião em que foram vendidos possivelmente para empresas menores e posteriormente sucateados. Sim, meu amigos(as), nenhum ODC-210 sobreviveu para contar a história - e esses chassis que rodaram muito certamente tinham muitas lembranças pra contar... E para a gente ter uma ideia de como eram estes carros, deixo aqui uma pequena ficha técnica com base nas informações muito interessantes do blog Fanatico del GM e da Wikipédia:
Proprietária original: Viação Cometa S/A
Carroçaria original: GM ODC-210
Segunda carroçaria: Ciferal modelo Líder
Chassi: GMC ODC-210
Motor: 4-71 (ciclo dois tempos, quatro cilindros em linha da série 71 da Detroit Diesel)
Potência (bruta): 152hp a 2.100 rpm
Torque (bruto): 55,3 kgf/m a 1.600 rpm
Transmissão: quatro marchas à frente mais ré, não sincronizada (originalmente)
Entre-eixos: 5.334 mm (210 pol, originalmente)
(1) Os termos "re-encarroçamento" e "encarroçamento" não existem formalmente no nosso léxico, conforme se pode consultar no Vocabulário Ortográfico da Lingua Portuguesa - VOLP, mantido pela Academia Brasileira de Letras neste link. Geralmente o ato de instalar uma nova carroceria em um chassis já usado é definido como "reencarroçamento", mas a grafia com hífen me parece mais adequada às normas gramaticais vigentes (como a palavra micro-ondas, sabe?). Se alguém mais versado no vernáculo puder solucionar essa tormentosa questão, fico grato!
Postagem atualizada em 24/06/2021, com correções de falhas na redação com o acréscimo de preciosas informações repassadas por Francisco Chico, grande entendido da história da Auto Viação Cometa e que conhece como poucos a história dos ônibus que rodaram pela empresa.
O mais curioso é terem permanecido com o motor 2-tempos, enquanto a Mercedes-Benz e a Scania consolidavam o predomínio de uma concepção mais européia e do motor 4-tempos no segmento de veículos comerciais pesados.
ResponderExcluirExatamente! Imagino que a manutenção do bom e velho Detroit se deu por razões um tanto quanto afetivas (gostar da mecânica), ou e talvez porque os "Morubixaba" PD-4104 rodaram até 1973 e isso não faria muita diferença no setor de manutenção.
ExcluirMas é realmente curioso, especialmente porque a empresa foi uma assídua compradora de plataformas Scania!
A GM dominou tudo com seus motores GM Detroit de 2 tempos. Até a GM EMD - General Motors Electro Motive Division, que dominou o mundo com as Locomotivas GM EMD com motores gigantes diesel com gerador elétrico para movimentar os eixos de suas locomotivas. Até hoje a EMD, mesmo pertencendo agora a Caterpillar ainda produz o mesmo motor GM EMD 710 diesel de 12, 16 ou 20 cilindros de 2 tempos para as locomotivas que rodam no Brasil e no mundo ainda. E só devem ser desativados porque não conseguem reduzir o nível de CO2 exigido atualmente, mas são motores robustos e fortes.
ExcluirOnde eu acho ,o desenho profissional
ResponderExcluirChevrolet coach ODC 210
Não sem quem pode te ajudar, caro(a) ânonimo(a), lamento. Mas obrigado pela visita!
ExcluirODC . Qual o significado de "overseas".
ResponderExcluirProvavelente por ser um chassi destinado somente à exportação, e como a exportação era predominantemente por navio convencionou-se o termo "overseas" na indústria.
ExcluirExatamente, como acima dito (e com propriedade), o termo "overseas" significa "além-mar" e equivale a um produto feito nos USA para exportação. Ou, no caso específico do ODC-210, o termo ultramar indica um coletivo que era feito em território que não o americano (esses eram montados aqui no Brasil!).
ExcluirSe alguém ler este comentário será um milagre , mas vamos lá . Por volta dos anos 1960/70 , os ODC-210 eram os " Reis " da Anhanguera , faziam de Campinas até São hPaulo ( ali na Lapa , rua Mercedes X Brig. Gavião Peixoto) em 45 minutos. Eu tinha um pobre Gordini e as vezes insistia tentar acompanhá-los .Davam 130 por hora e eu só conseguia chegar perto em algumas subidas , isso sem falar no ronco absurdamente inconfundível de seu motor , ainda hoje, imbatível .
ResponderExcluirCaro Barbosa,
ExcluirNunca tive o prazer de andar em um ODC (ou mesmo em um Gordini), mas imagino o quão rápido se poderia ir em um GMC nas estradas da época. Não conheço muito São Paulo, mas vi aqui no Google Maps o trajeto indicado e o tempo da viagem era muito bom naquela época, certamente os ODC passavam fácil da máxima do Gordini (apesar dos esforçados 40hp de emoção). O urro deles é sensacional, numa subida com pé embaixo deve ser de arrepiar (o freio motor também tem um urro que a gente não esquece).
Grato por seu relato, era um tempo muito bom e que hoje, infelizmente, nada temos de parecido: nem mesmo um Scania de 750cv deve rodar tão rápido, por conta do trânsito que só piora...
Volte sempre!