sexta-feira, 8 de março de 2019

Carros que passaram por mim: Fusca 1977

Corria o mês de junho de 2016 e eu andava não muito animado. Tirei férias de 20 dias e tive o azar de ficar doente justamente no período de descanso. Planejei pequenas viagens, dias de descanso e demais tarefas necessárias à vida cotidiana, mas tudo, tudo mesmo, foi por água abaixo por conta de uma gastroenterite bem tinhosa, agravada por uma até então desconhecida intolerância à lactose e por uma anterior virose, numa combinação daquelas pra ninguém botar defeito.

Mais magro, olhos fundos e sem a menor paciência de permanecer deitado na cama, fiquei pensando no que fazer depois de melhorar, quando tive um estalo: porque eu não compro um carrinho velho? É, eu sei, tinha uns trocos guardados, não era lá muita coisa (bem pouca coisa, mesmo), mas talvez fosse possível encontrar um carrinho razoável por um preço bem razoável.

Na época eu não estava naquela pilha toda de encontrar um Chevette; queria, antes de tudo, um carro antigo fácil de conservar e de arrumar, porque eu queria me sujar de graxa e consertar a parte mecânica, se fosse preciso. Lataria não me assustava tanto, porque meus dois primos são funileiros (ou latoeiros, se você preferir) e entendem bem do riscado. Bastava andar razoavelmente bem, ter documentos em dia e ser simpático.

Essa foi a minha ideia: "e que tal um Fusca?".
Procurei por semanas um carro interessante. Achei um Del Rey quatro portas com a forração interna digna de um ônibus de sacoleiros; um Chevette DL rebaixado com cheiro de cânhamo impregnado no estofamento; uma Parati sofrida que exigiria um milagre para ficar melhor; um Escort L 1983 de um dono falecido; um Escort L 1984 que estava ruim até pra ser usado como vaso de plantas; além de um Versailles que, seguramente, deve ter carregado alguns corpos no porta-malas amplo, a julgar pelo cheiro incomum que brotava do carpete. 

Depois de um tempo, diria umas duas semanas, eu achei o Fred, um simpático Volkswagen Sedan 1300L amarelo java, com motor em excelente estado de conservação, carroceria um tanto podre e documentos em ordem. E por um preço bem promissor. Bastava o test-drive para sacramentar a compra, que fiz numa noite um pouco fria de julho de 2016, a primeira vez em que andei e guiei um Besouro.
Meninos(as), que carro interessante!

Ao entrar, logo me ajustei no banco de encostos baixos (e tecido que já tinha sido trocado algumas vezes), ainda original, embora ele estivesse com o mecanismo de regulagem travado, por conta de um podre no assoalho. Os pedais são empurrados para baixo, mas isso não é nada de grave. O para-brisa fica bem perto do seu nariz, o volante (no caso, de um Gol CL da geração 1988-1995) fica bem posicionado e a alavanca de câmbio não é lá das mais ergonômicas.



Tudo bem original, apesar de gasto. A buzina não era no volante, mas um interruptor instalado no buraco do afogador.
Por falar nela, a posição de engate lembra um "H" imaginário: primeira pra esquerda acima, segunda esquerda abaixo, terceira direita acima e quarta esquerda abaixo. A marcha-à-ré me deu uma surra: é preciso jogar a alavanca em ponto morto e empurrá-la para baixo e para esquerda, num ângulo de uns 45°, tudo isso com cuidado para não arranhar as engrenagens (lembre-se: o câmbio fica lá atrás e você o aciona por um varão de mais de 2,5m de comprimento). Mas depois aprendi o macete: ao fazer o movimento de premir a alavanca, você vence a resistência de uma mola, que volta ao lugar quando a ré é engrenada (e você, ao menos no Fred, escutava um clec quando isso acontecia).

O cinzeiro dos Volks da época mostrava o diagrama das marchas: note o ângulo aproximado de 45° entre o R e o N, coisa que só a prática te ensina (foto: Google.com)

Bati o arranque e chamei a primeira, ela entrou logo, soltei a embreagem sem muito jeito e o carrinho saltou pra frente, logo pediu a segunda, que entrou arranhando (esse carro, em especial, estava com desajustes no trambulador e com as buchas gastas, além da minha falta de habilidade) até que chegou a esquina. Era noite e eu sou míope, o dono do carro me avisou que a esquina não era a minha mão de preferência e tive de pisar nos freios pra tentar deter a marcha. Não vi a placa PARE.

36 cavalos de diversão, acreditem. A relação de marchas deixa o bicho relativamente esperto!
Quando premi o pedal, quase pude sentir as sapatas se expandindo par emburrar as lonas até pararem os tambores, coisas que um carro sem servofreio te dá. Você consegue sentir o freio trabalhando, mas sem muita eficiência: os freios a disco eram opcionais mesmo na versão 1300L e os quatro tamborzinhos fizeram com que o Fusca varasse a esquina. Quase bati num moderno Prisma com o dono do Fusca sentado no banco do lado. E quem disse que um Fusca não dá adrenalina?



Por fora, o carrinho era uma tragédia: o amarelo java, uma das cores da Volks para o ano de 1977, é aplicada por tinta duco, que queima no sol com enorme facilidade, de modo que a carroceria exibia vários tons de amarelo, do desbotado ao mais forte, uma visão lisérgica muito adequada ao contexto. Fora um ou outro escorrido de marrom, este da ferrugem. Sim, a ferrugem: o carrinho estava podre, assoalhos ruins, mas estruturalmente bom.

Andar com ele é uma beleza, apesar da precariedade do assoalho, dos cintos diagonais (que eu mesmo troquei por novos, porque os antigos, genéricos, estavam bem debulhados) e do fato de a luz interna não funcionar (tudo num breu lá dentro). A visibilidade lateral é ruim (meu outro carro era um Mille 2013, quase um aquário), mas todos param pra você mudar de faixa.

Numa curva do meu bairro eu resolvi testar a estabilidade, os pneus ressecados e a suspensão de braços tensores não deram muita conta do recado e eu tive de realizar o primeiro contraesterço da vida. Pouco me lixava se o carro era velho, eu me divertia absurdamente!

Ruim é que o dono anterior resolveu se atrever a montar um rádio: o aparelho funcionava, mas um curto-circuito descarregava a bateria, fuga de corrente que o esforçado dínamo original não dava muita conta. Até subi a marcha lenta pra fazer o gerador trabalhar mais (evitando, assim, o acendimento da luzinha vermelha); mesmo assim, em uma oportunidade eu fiquei a pé ao não conseguir dar a partida.
Parei numa loja pra comprar dois parafusos para instalar as novas maçanetas dos vidros (ao custo total de R$ 0,10, pois os parafusos não vieram com as peças!) e o carro simplesmente se recusou a andar. Normalmente eu recitaria todos os meus palavrões prediletos, mas entrei no clima de curtição e dei muita risada... Depois do socorro chegar na forma do Seu Domingos, amigo dileto da família, que trouxe um cabo auxiliar para acoplar na bateria do Monza 1986 dele.

Depois do enguiço eu fiquei de levar o carro numa auto elétrica e o tempo passou. Raramente eu saia com o Volks, até que, em uma oportunidade, o Fusca morreu de vez. Lá ficou, imóvel, inerte, a ponto do dono do estacionamento (eu só tinha uma vaga no prédio, tive de alugar uma pro carrinho) me convidar, por telefone, para tirar o carro de lá, porque não fazia sentido, na visão dele, deixar um carro tão velho ficar parado num estacionamento bastante concorrido.

"Se eu quiser estacionar uma Fiorino cheia de m* naquela p * de vaga, ninguém vai deixar. Se eu atrasar a mensalidade o senhor vai me ligar cobrando, não é? Mas ai eu coloco um Fusca e o senhor reclama, qual o problema com o Fusca?", respondi educada e pausadamente ao senhorio da vaga. Ele agradeceu gentilmente por não ter uma Fiorino com esterco dentro, mas me convidou para migrar para outro estacionamento dele, menos movimentado. 

Não, eu não recambiei o Fusquinha para a outra vaga.

Fiquei lá de pirraça até vender o carro, que me trouxe um certo desânimo. Especialmente no dia em que cheguei lá e vi uma das portas do Fusca entreaberta porque uma senhora que estacionava lá achou que o meu sedã era caçamba de lixo e enfiou uma mala e diversas cadeiras de praia - objetos que ela abandonou dentro do carro e que eu doei, muito gentilmente, a um carroceiro que coletava material reciclado pelas redondezas. O senhor, já cansado de anos de vida injusta e sofrida como coletor de reciclado (e não lixo, como se diz), ficou contente com os presentes.
Consta que a senhora reclamou do sumiço dos objetos que ela guardou no meu Fusca ao dono do estacionamento, mas ele, que de tudo estava ciente, deu de ombros. Essa senhora, que eu jamais soube quem era, não tornou a guardar nada no meu carro ou no dos outros. Agora quando escrevo me dá um certo remorso por ter presenteado alguém com algo que não era meu, mas, convenhamos, aquela criatura merecia uma lição. E o dono do estacionamento, conivente com o fato de o Fusca ter se tornado caçamba de lixo, também recebeu outra lição.

Em dezembro de 2016, após três meses de inatividade, uma amiga da família se interessou pelo carro e o levou. Hoje o Volks está em boa forma, totalmente reformado, novinho. Eu não vi como o Fusquinha ficou depois de pronto, pra não atiçar a saudade. Ao menos fiz a coisa certa: é melhor passar o carro pra frente do que deixar que ele vire sucata.

É, filhinhos e filhinhas, vou dizer que ter um Fusca é divertido.
Pena que eu não aproveitei tanto quanto deveria...

2 comentários:

  1. Divertida Crônica Automotora, fazendo jus ao nome do Blog, mostrando como extrair diversão de um surrado Fusca, que pelo menos te deu satisfação ao rodar e te levar a todo lugar !

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É a maior lição que aprendi com o Volks: não precisa ser um carro perfeito, basta ser divertido. E o Fusca é bastante divertido, dei muitas risadas e me desestressei muito com ele nos poucos passeios que fiz.

      Grato pelo comentário e pela visita, volte sempre!

      Excluir

Este espaço está sempre disponível para a sua contribuição. Fique a vontade e participe, será um prazer ler - e responder - seu comentário!