sábado, 16 de março de 2024

E como será que anda um ônibus Magirus-Deutz? (1968)

Quando alguém menciona a fabricante Magirus-Deutz (absorvida pela Fiat e que deu origem à Iveco), certamente se lembrará dos veículos de combate a incêndios; os caminhões projetados para resgates em situações difíceis foram empregados aqui no Brasil por longos anos e viraram sinônimo de auto escada mecânica. Se alguém ver, por exemplo um Volvo portando uma escada para salvamento em alturas, é muito provável que diga que se trata de uma "escada Magirus".

Hoje, porém, vamos além dessa fama (merecida) para falar da inciativa da fabricante alemã aqui no Brasil. Sim, a fabricante lançou no final de 1967, já como modelo 1968, quatro modelos: U-1014-1/1 (chassis curto para ônibus urbanos, com entre-eixos de 5,00m); U-1014-12/1 (chassis longo para urbanos, com distância entre os eixo de 5,73m); URL-1014-12 (chassis rodoviário para rodoviários, 6,00m de entre-eixos) e o RL-1014 (plataforma rodoviária com 6,00 de entre-eixos). Os três primeiros permitiam o uso de carroçarias autoportantes (o ônibus monobloco, que se ajusta ao chassis) e o último era uma plataforma mais convencional, para encarroçamento típico (justaposição às vigas do chassis). Todos tinham o mesmo motor de 135cv de potência e usavam pneus 900x20 de doze lonas, diagonais.

O motor em todas era instalado na traseira e merece destaque pelo fato de ser arrefecido a ar. Sim, era o propulsor F6L de seis cilindros, quatro tempos, 8.723cm³ de cilindrada e os já citados 135cv de potência a 2.300rpm, com torque de 51 mkg a 1.200 rpm. Acoplado a uma transmissão de seis velocidades (todas sem sincronização, seca), não fazia feio se comparadas a outras plataformas. Sim, 135 cavalos de emoção...

Hoje seria inconcebível um ônibus rodoviário com motor traseiro e menos de 200cv, mas naqueles tempos, só o chassi B-76 da Scania-Vabis chegava perto disso (tinha 195cv DIN) Os O-321da Mercedes Benz contavam com motor OM-321 de de 110cv (norma DIN) - só os O-326 receberam o motor OM-326  mais reforçado de 180cv (DIN), então a potência do Magirus não era exatamente ruim, nem muito brilhante. Na média, portanto. E com um urro único, pura degustação automotiva...

Mas o sucesso não foi o forte da Magirus-Deutz, ao contrário das auto escadas mecânicas: em 1972 a fábrica nacional foi vendida para a Cummins, esta que logo tratou de acoplar seus motores aos chassis até então produzidos, mas essa é outra história... Fato é que lembro de ter visto algumas imagens de época de ônibus com plataformas da marca (não sei se alguma sobreviveu original aqui no Brasil), mas até então não tinha maiores informações sobre como era rodar numa delas. 

No máximo imaginava que a mecânica arrefecida a ar não deve ter feito sucesso em razão das dificuldades com nosso clima, como também percebia que na Argentina a fábrica teve bem mais sucesso. Bem mais, inclusive. E as ideias gerais sobre essa plataforma quase esquecida foram em boa parte substituídas por informações mais sólidas quando li a avaliação, feita pela equipe revista Transporte Moderno para a edição de dezembro de 1968, cuja íntegra tenho o prazer de apresentar aos amáveis leitores deste espaço (cortesia da Editora OTM, que teve a louvável inciativa de disponibilizar a todos os entusiastas todas as suas edições):




Se você conhece a revista Motor-3, vai reconhecer quem está ao volante do Ciferal Flecha de Prata Sim, é o JLV, que na ocasião fazia parte da equipe de testes da Transporte Moderno.





As informações sobre custos operacionais hoje tem apenas um efeito de curiosidade (tivemos diversas alterações no sistema monetário e uma inflação ridiculamente alta desde 1968), mas a impressão geral de que a plataforma Magirus-Deutz não era tão mais cara ou dispendiosa do que as demais. Possível que o seu motor arrefecido a ar - o que tinha de mais diferente - não foi exatamente um fator de sucesso (se bem que a Cummins trocou os propulsores, novamente sem sucesso). Nem tudo dá certo nessa vida, claro, mas bem que poderia ter sobrado ao menos um pra contar a história...

sábado, 9 de março de 2024

Avaliação da semana: Dodge Magnum (1978)

Provavelmente já disse antes algo a respeito (e eu sei que sou repetitivo), mas não custa reforçar: a Chrysler do Brasil, nos últimos meses de 1978, trouxe ao público uma esperada renovação de sua linha de veículos maiores, com mudanças na frente, traseira e no interior. Não foi nada radical, mas suficiente para manter os derivados do Dart em dia com o mercado.

Por falar no Dart, ele se manteve em linha, mas com a frente e traseira diferentes (o interior recebeu alguns retoques nos bancos e revestimento das portas, inclusive com opções monocromáticas além do usual preto). O Gran Sedan foi substituído pelo Le Baron (com nova frente, traseira e interior) e o Magnum surgiu da análise da fábrica para um interesse dos potenciais clientes em comprarem veículo mais luxuosos com apenas duas portas. O Gran Cupê foi descontinuado em 1975 e pode ser que a fábrica tenha recebido reclamações suficientes para pensar em um modelo para substituí-lo.

E não posso esquecer do Charger R/T, que também ganhou nova frente e traseira (a mesma do Magnum/Le Baron), recebeu novos bancos e revestimentos e perdeu as faixas laterais, além de ganhar uma cobertura nos vidros laterais traseiros; há quem diga que o esportivo perdeu um pouco da graça (da esportividade), mas não se tratou de algo muito fora das tendências para 1979.

Podem até parecer mudanças modestas - e foram, sobretudo quando se compara, por exemplo, àquelas que a linha Opala sofreu em 1980 (desenho) e em 1981 (interior); a linha Landau também recebeu bons retoques e até mesmo um novo painel em 1979. Mas é importante lembrar que a Chrysler do Brasil não vivia o seu momento mais próspero... Basta lembrar que em 1979 o controle acionário começou a passar para as mãos da Volkswagen, então o pessoal da fábrica não tinha um orçamento tão grande para fazer todas as mudanças que talvez sonhariam.

Mas se engana quem pensa que a solução mais modesta de redesenho foi ruim; o Magnum vendeu até que bem, obrigado, e era um carro muito interessante para a proposta de luxo com bom desempenho, como podemos ler do relato do saudoso Charles Marzanasco Filho e ver das fotos de Heitor Hui publicadas na edição n. 219 (outubro de 1978) da Quatro Rodas, digitalizada de nosso acervo:








Quem poderia dispor de Cr$ 296.400,00 - atuais R$ 359.656,14, corrigidos pelos índices do IGP-DI da FGV - teria a possibilidade de ter um cupê altamente desejável (chegou a ganhar o prêmio de Carro Status pela revista de mesmo nome) e com uma interessante variedade de cores exteriores e interiores:


A tabela acima elaborei há uns dez anos atrás, de informações recolhidas de múltiplas fontes, mas não se trata de material definitivo: a produção do Magnum (e dos demais Dodge) não era tão alta assim, então pedidos especiais poderiam ser encomendados, como a opção do preto para a carroçaria (LX-9). Afinal de contas, quem tinha boas reservas financeiras para comprar seu Magnum, poderia escolher qual a combinação de cores levaria pra casa, como a cinza báltico do carro que ilustra a reportagem.

E se eu tivesse esse caminhão de dinheiro lá em 1979, iria até a Meyer Veículos encomendar um Le Baron (pelas duas portas a mais, apenas) azul báltico com interior e vinil na mesma cor. Ou quem sabe branco ártico com interior e vinil azul, mais discreto e menos cerúleo...

sábado, 6 de janeiro de 2024

Tivemos o chassis Scania BR-110 no Brasil? Sim, e posso provar!

Se na última postagem falei da Citröen - minha predileção automotiva nos tempos de infância -, hoje direi algo sobre a Scania-Vabis (hoje só Scania, mesmo), a fábrica que antes se dedicava ao transporte ferroviário e com o Século XX teve a iniciativa de investir em bicicletas (muito rapidamente), automóveis de passeio (alguns poucos) e veículos utilitários, estes muito mais famosos e que a tornaram mundialmente famosa.

Talvez Freud explique (e tenho a vaga impressão de que ele tudo poderia explicar...), mas posso apostar que a predileção de garoto pela fábrica sueca se deve aos ônibus Scania que via na infância (e já falei de um deles aqui). O urro gutural que lhes era tão peculiar era altamente melódico, sempre corria para vê-los passar pela frente de casa. Se acha exagero, ouça um DS-11 e você saberá do que estou falando...

Deixando os devaneios para lá, fiquei intrigado ao descobrir, tempos atrás, que a Scania chegou a testar no Brasil um chassis com motor traseiro antes do lançamento do BR-115, em abril/1972. Soube vagamente, de começo, que uma das três unidades foi para a Viação Cometa, algo que não me espantou, pois se tratava de renomada frotista daquela empresa de transporte rodoviário e que, cedo ou tarde, teria de substituir os GMC e outros veículos na frota. Mas, fora isto, nada muito concreto. Ai como faz o nosso amigo Juninho Fonseca do excelente blog Maverick na História, fui para as pesquisas.

Aliás, o próprio chassis BR-110, ao que pude apurar, não era exatamente popular. Apesar da vastidão da internet, pouco obtive de concreto sobre esta plataforma, a qual, inclusive, nem sequer foi citada no livro da Scania a comemorar os primeiros cem anos de seus ônibus (Desfile Histórico Ônibus Scania, editada em 1991), que faz parte do nosso miúdo acervo.

O que pude apurar, quando muito, é que a plataforma foi lançada em 1968 e em 1970 foi substituída pelo modelo BR-111; fez mais sucesso no mercado inglês, graças a um acordo firmado com a MCW e lá não deve ter vendido mais de 50 unidades, afora uma ou outra que deve ter rodado em outros países, como este interessante coletivo encarroçado pela argentina Cametal e fotografado em 1971:

Imagem - que parece ser um Ektachrome - de um raro BR-110 extraída do site carinpicture.com

Não consegui informações técnicas precisas sobre o BR-110, nem catálogos ou informações oficiais. A matriz da Scania me atendeu por e-mail com muita cortesia e rapidez, mas eles não puderam me ajudar. Pode ser pelo meu inglês terrível, mas é provável que essa plataforma não teve ter sido exatamente um retumbante sucesso e pouco sobrou pra contar história dela. Continuo as pesquisas, podem cobrar, mas até agora nada pude apurar a respeito desta plataforma. 

Mas algo já posso dizer: ao contrário do que se pode imaginar, a sigla "BR" nada tem a ver com nosso Brasil: o prefixo - disse a Scania no livro acima dito - que o "B" indica que se trata de um chassis para ônibus (bus, em inglês) e o "R" vem da disposição traseira do motor (rear, novamente em inglês). E o 110 veio da combinação da cilindrada do motor (onze litros) e o último a série (0, a primeira). E isso se aplica aos chassis mais recentes, como o BR-115, ônibus com motor na popa de onze litros de cilindrada e com motor de quinta geração de aperfeiçoamento. Simples, né?

Mais simples de descobrir foi que a Scania do Brasil, no ano de 1969, importou da matriz três unidades do chassis BR-110 (que, ao contrário de muitos outros da época, era do tipo buggy, com chassis que se acoplava a uma carroçaria integral, só contava com as vigas da parte da frente e as de trás) e as enviou para a Ciferal a fim de receberem a carroçaria Líder, moderníssima e certamente pronta para receber as alterações para se tornar autoportante.

A edição n. 76 da revista Transporte Moderno (edição de novembro/1969) trouxe as informações muito interessantes sobre o trio de novidades: contava com motor de 202cv - de aspiração natural e montado transversalmente, o mesmo motor do caminhão L-110 lançado em 1968 -, suspensão pneumática integral, embreagem com acionamento pneumático e hidráulico combinado e outros detalhes que tornaram esse trio de Ciferal Líder altamente desejável e moderno:


Até pelo que pude apurar, nada veio além das três unidades. Nenhuma parece ter sobrevivido aos dias atuais, mas a gente pode estimar, com razoável grau de certeza, quais foram as empresas que adquiriram duas unidades, além da terceira. 

Uma delas, adiantei acima, foi encaminhada para a Viação Cometa e lá recebeu o prefixo 2014; um dos entusiastas mais destacados da empresa - Wilson Roberto Degressi Míccoli - disse em comentário no site Ônibus Brasil que o veículo da Cometa rodava na linha São Paulo - Rio de Janeiro e no final de sua vida útil foi vendido para uma empresa paulista, sem notícias do paradeiro mais atual, a não ser que muito provavelmente recebeu turbocompressor, upgrade bastante comum na época:

A imagem, provavelmente de 1970 (vide a placa de experiência sem letras, pré-1971), é do blog Classical Buses.

O segundo coletivo com chassis BR-110 foi vendido para a Penha e recebeu o prefixo 1304; naquele ano de 1970 o carro chegou a estampar um anúncio da viação publicado na revista Manchete, era o flagship da empresa, orgulhosa de seus muitos quilômetros rodados por dia:


Seguramente ele foi vendido antes de 1982, pois há registo deste veículo em uma outra empresa, também do Paraná. O curioso é que a nova dona - a Rainha Turismo, de Curitiba - providenciou a troca do propulsor traseiro por um dianteiro, também Scania, executando sérias modificações no chassis e na carroçaria. Por iniciativa própria, transformou o BR-110 em B-110, por assim dizer...

Não se trata de algo inédito, mas de difícil execução e adaptação, talvez por sofrer alguma dificuldade na reposição de peças específicas do chassis BR-110, a nova dona tratou de aplicar um motor dianteiro e rodou com ele alguns anos, conforme se pode ver da imagem tomada por Donald Hudson no ano de 1982 e publicada no site Ônibus Brasil:

Não se sabe o paradeiro do Ciferal de chapas CP-5973/PR, provavelmente foi sucateado antes da última década do Século XX.

O último BR-110 foi parar na Empresa Unida, de Minas Gerais: não se sabe se ela o comprou usado depois de testes e demonstrações da Scania - e há uma certa controvérsia se tal unidade veio usada da Cometa, apesar de se ter informação fiável de que não é o mesmo veículo -, mas é fato que esse chassis rodou pela empresa nos anos 70, como a imagem, publicada no antigo site Ponto de Ônibus e retratada por Rodrigo Mattar em seu blog, está a indicar:
Sei que a postagem é magra, gostaria te ter mais algo de inédito além da reportagem da revista Transporte Moderno, mas foi o que consegui espremer de dados depois de mais de um ano de pesquisas. Seguramente, nenhum BR-110 sobreviveu aos dias atuais (nem mesmo a unidade que rodou na Penha e ganhou motor dianteiro), o que é uma pena. De todo modo, o legado da experiência da Scania no final de 1969 teve frutos com o lançamento do BR-115 já em 1972, cuja evolução chega até os muito atuais e tecnológicos chassis Euro 6, nada poluentes e altamente silenciosos. Não urram como os antigos, mas é a vida...

domingo, 31 de dezembro de 2023

Catálogo da Semana: Citroën GS birotor (1974)

Acho que sou um citroentista desde moleque. Não sei bem o motivo, mas os carros desta marca sempre me chamavam atenção adoidado. Nos meus tempos de infância, um XM era deliciosamente raro e belo de ser visto. E em meu bairro havia um sujeito imprudente o suficiente para ter um BX preto com a suspensão em dia, apesar dos inúmeros buracos...

Ver aquele BX subir a suspensão logo depois de ser ligado, ganhando preciosa altura sem esforço ou gemido, foi um espetáculo tecnológico inesquecível para meus onze anos. Hoje sei que até um ônibus pode fazer isso, mas esse tipo de demonstração era facilmente impressionável para um moleque que não tinha internet e só conhecia, vagamente, aquele carro de algumas revistas antigas.

Sei que muitas pessoas reclamam da complexidade mecânica dos Citroën; outros tantos reclamam do alto custo das peças e da mão de obra para os reparos e concordo com as duas assertivas. Mas não estou aqui para falar do que já se sabe, do que se ouve falar de alguém que ouviu falar... O óbvio não me move e a fábrica, ao menos nos seus tempos mais idos, a fábrica não era nada óbvia. 

Não é a de hoje, que mal embala um Kwid para viagem e dele faz um C3; é a de ontem, aquela fábrica suficientemente ousada para colocar em produção um carro avançado por si só, com desenho atípico e um motor Wankel. 

Lançado em 1970, o GS contava com a famosa suspensão hidropneumática (melhor seria dizer oleopneumática, pois se usa óleo em vez de água, mas vocês entendem, certo?) e tinha um desenho que não tinha nada muito semelhante. Bonito pra mim seria uma palavra forte para definir; diria, muito pessoalmente, que é um carro instigante, até harmônico. Feio não é, com certeza... 

E se o arrojo das formas e da mecânica, os franceses não se contiveram e em 1973 (como modelo 1974) trataram de aplicar um motor do tipo Wankel de dois rotores (cada qual com cilindrada exata de 497,5 cm³, mas com a cilindrada equiparada pelas regras internacionais ao dobro da capacidade, para ser justo com os motores de quatro tempos convencionais). Essa delícia giratória alcançava 107 cv (pelas normas DIN) a 6.500 rpm e não ser parecia nada com o que até então se tinha no portfólio da Citroën.

Tanto era novidade que a revista Auto Esporte dedicou algumas páginas para falar dele, conforme se pode inferir da íntegra da matéria publicada na edição de novembro de 1973 (cinquenta anos atrás!):



E enquanto editava esta postagem, encontrei no sensacional Old Car Manual Project  - cuja visita nós muito recomendamos - o catálogo que a fábrica lançou no final de 1973 para mostrar aos interessados todos os detalhes dessa excêntrica e fabulosa novidade (vá lá que o Ro 80 já era conhecido na Europa, mas motor Wankel na Citröen era novidade), na medida para encher os olhos de qualquer entusiasta:


















Se o motor do GS padrão era a parte mais chata dele, bem, isso seria resolvido com o propulsor birotor. A aposta foi alta e arriscada, mas não deu certo... É que o GS assim equipado custava uma fortuna, consumia combustível de forma não muito contida (em plena crise do petróleo) e os problemas sérios que assombraram o Ro 80 (resolvidos, posterior e tardiamente) apareceram no Wankel da Citroën, que logo se mostrou ter defeitos crônicos que exigiam alto custo de reparo. 

Apenas 847 GS desse modelo fantástico foram feitos até o ano de 1975 e muitos dos poucos feitos foram recomprados pela fábrica para serem destruídos. Um recall sem precedentes da fábrica, que preferiu destruir do que dar manutenção. Algum sobrou? Sim, mas são raros, verdadeiras joias problemáticas altamente maravilhosas.

Pode ter sido uma enorme ousadia (talvez temeridade), mas há cinquenta anos atrás a Citroën não tinha medo da ousadia, algo que hoje, por mil motivos, passou a ter...

sábado, 16 de dezembro de 2023

E a primeira Kombi? (1966)

Quando criança (e isso já faz um certo tempo), ver uma Kombi nas ruas não era algo raro, atípico. Por se tratar de um utilitário - um carro com ampla vocação para o trabalho rude em circunstâncias rudes -, não se esperava da Kombi muito conforto, mas a capacidade de transportar do ponto A ao B uma tonelada de carga gastando (relativamente) pouco combustível e sem muitos aborrecimentos mecânicos.

Por isso, eu as via transportando alunos para escola (e nisso foram desbancadas pela Besta, Topic e outros utilitários diesel altamente competentes), transportando compras para quem fosse ao supermercado (o Superbem que era do meu bairro tinha uma perua dessas), levando cartas e encomendas para os Correios, servindo de mercado ambulante (para vender frutas, verduras, vassouras e o que mais pudesse imaginar), de oficina móvel (chaveiro, inclusive) e tantas outras atividades que se possa imaginar.

Naquele tempo, pelo grande uso das Kombi, as mais antigas (pré-1976) eram as mais surradas e não muito valorizadas; não tem dez anos atrás ainda via duas destas fazendo fretes pela capital catarinense depois de muito trabalharem na vida, então fiquei surpreso ao perceber a alta valorização delas nos últimos anos. Se antes alguém venderia por quilo no ferro velho uma Kombi das clássicas, hoje elas valem mais do que uma mais nova e em perfeito estado, mesmo perto de um estado de sucateamento...

Se é certo - ou não - o fenômeno que inflacionou o preço das veteranas peruas, deixo a quem lê a resposta; mas me parece certo concluir que a Kombi tem alto valor histórico e de mercado, sobretudo as antigas. E imagine só o valor (nos dos aspectos) da primeira produzida no Brasil! Imensurável.

E cadê a nossa primeira Kombi? Não sei, infelizmente. Mas posso confirmar que ela foi muito bem usada depois de ser vendida, como indica a reportagem que a revista Automóveis e Acessórios publicou em sua edição n. 251, de novembro de 1966, gentilmente digitalizada pela Biblioteca Nacional:


Será que ela ainda existe? Eu mesmo me fiz essa pergunta várias vezes depois de ter lido a matéria e a chance dessa Kombi 1957 de chapas 40-00-66 da Guanabara (sim, Guanabara!) ainda existir é remota. Mas, como se trata de um veículo histórico, talvez um dia alguém tenha notícias e até restaure para voltar à antiga glória, quando foi fotografada com o 00001 na frente da linha de produção da VWB.

sábado, 28 de outubro de 2023

Catálogo da Semana: Mercedes-Benz OH-1520 (1988)

Sempre fui muito atento aos automotores (não só a eles, mas aqui trato deles), então tudo o que movesse por seus próprios meios despertava interesse; se fosse um veículo menos usual, com características que fugiam ao comum, certamente ficaria com as antenas ligadas nele. Foi o que me ocorreu quando vi um Marcopolo Torino da então empresa Paulotur.

Um tio paterno foi motorista desta empresa nos anos 1990 (e foi o auge da empresa); lembro-me de em mais de uma vez viajar num dos coletivos dela, alguns de porte alentado, outros de turismo. A viagem de Florianópolis até Garopaba (onde a família do meu pai morava, ainda mora) era não maior do que 72km, mas, nos meus tempos de infância, percorria-se longo trecho na desafiadora BR-101 de pista simples, subindo e descendo o Morro dos Cavalos, experiência inesquecível pela impressionante quantidade de acidentes, desmoronamentos e outros problemas. 

Nunca tive medo de estrada - não digo isso por me gabar, mas por não ter mesmo -, então desde moleque eu dava um jeito de ir o mais perto do motorista possível, no banco da frente do coletivo, para ver a estrada emoldurada sobre o amplo para-brisas e o trabalho do condutor, árduo naquelas épocas. O tempo passou, fiz o trajeto várias vezes e me faltou um ônibus daquele tempo que eu gostaria de andar: o 1701:

A pintura original mantinha os dizeres Paulo Lopes nas laterais, é o nome da cidade que inspirou o nome Paulotur (foto de Vitor Dias, via Ônibus Brasil)

Talvez pra quase todo mundo isso seria um fato irrelevante, algo desimportante e até trivial. Eu o vi muitas vezes a fazer as linhas da empresa (a mais distante era a Floripa-Garopaba). De longe ouvia o motor OM-355/5 empurrando o coletivo, o som era até melódico. Não um urro como os dos Scania de então, mas era respeitável. Os 187cv aos 2.200 rpm faziam dele um coletivo com feições urbanas com apreciável potência, necessária para transportar os 54 passageiros que ele comportava.

Sim, era um coletivo de feições urbanas (afinal de contas, era o mesmo Marcopolo Torino que via aos montes), mas o interior dele não era ruim, não: contava com poltronas do tipo rodoviário, envolvidas em courvin marrom a combinar com as cortinas da mesma cor. Eram os anos 90...

Não posso garantir que o espaço para as pernas era bom, mas o veículo era interessante (não mais tinha as cortinas marrom naquela época) e o melhor lugar era acima do motor. (foto de Diogo de Carvalho Silva, via Ônibus Brasil)


O motorista tinha um painel de instrumentos até que bem informativo: não era mais aquela pobreza dos LPO-1113, ao menos já contava com um conta-giros, ideal para fazer bom uso da máquina (e no tempo o pessoal não andava devagar) e até garantir certa economia. A direção já contava com assistência hidráulica, felizmente.

O veículo era bem cuidado e o painel de instrumentos estava bem íntegro. Notem que o volante de fino baquelite está de ponta-cabeça, mas não a estrela da Mercedes (era muito comum que o símbolo de três pontas fosse girado de cabeça pra baixo). Foto de Artur Velter Medeiros, via Ônibus Brasil

O 1701 até me escapou algumas vezes. Em mais de uma oportunidade eu o esperei para rodar, nem que fosse um trecho curto, mas o bico era ensaboado, até arisco: só de pensar em passear, ele refugava, fugia ou era escalado pra outra linha qualquer. O ideal seria andar nele fazendo a Garopaba-Florianópolis sentado sob o motor, para aproveitar o vento fluindo das janelas abertas, sem abafar o ronco do propulsor e sentindo melhor as amplitudes dos movimentos da suspensão, que não era pneumática.

Setenta e dois quilômetros de diversão! (foto de Diego Almeida Araújo, via Ônibus Brasil)

Ao contrário do que se poderia supor, o OH-1520 rodou vários anos: o chassi foi fabricado em 1991 (já como modelo 1992, a carroçaria certamente no início de 1992) e permaneceu em uso até meados de 2016, se não me engano. Lembro que ele ficou desativado na garagem uns tempos, mas a empresa não estava lá em seus melhores tempos e bastou lavar e abastecer para o brioso 1701 retornar à ativa, presença não rara na rodoviária da capital catarinense:

Geralmente ele ficava estacionado na área de armazenamento da rodoviária, esperando a nova partida (foto de Leonardo da Silva, via Ônibus Brasil)

Quando falo que a empresa estava em momentos duros, não exagero: em 20/07/2017 a empresa perdeu a concessão de todas as suas doze linhas em razão de seus múltiplos problemas e dívidas. A frota já bem envelhecida acabou virando sucata, alguns poucos ainda rodam por ai. E o 1701 foi desmanchado nesse melancólico fim, terminou seus dias em um ferro velho... E acreditem, ele estava muito bem cuidado, original e com o interior ainda como era em 1992. Com o OH-1520, foi-se a oportunidade de andar num ônibus que eu nunca consegui...

Bom, as minhas histórias são irrelevantes e o(a) amável leitor(a) bem poderia ser poupado delas. Aqui serve, apenas, de contexto para explicar a vocês as lembranças que me ocorreram quando encontrei esse catálogo do chassis Mercedes-Benz OH-1520, do ano de 1988 (mas igual ao 1701) no rico e valioso acervo da Anfavea, a quem sempre agradecemos a gentileza de digitalizá-lo:





E se você, assim como eu, é interessado por esses veículos interessantes, aguarde os próximos capítulos, sempre tem um bom tema pra gente prosear.