Como forma de comemorar as mais de trinta mil visitas ao meu modesto blog (reconheço que umas 800 são minhas), inauguro, hoje, um novo espaço, uma nova forma de veicular conteúdo neste espaço, até para honrar o título que orna esta página.
Obviamente, não tenho pretensões de escrever textos muito bons; mesmo assim, compartilho com vocês, com o ardente desejo de que meus escritos não os farão dormir, uma pequena história sobre um Chevrolet 1952:
O Chevrolet do meu Tio
Eu tinha dezesseis anos, e me lembro
se fosse hoje. Num canto obscuro da garagem do meu tio, amplo espaço que desde
sempre foi atulhado de carros, móveis, guardados e uma infinidade de peças e
ferramentas, um carro sempre me chamou a atenção. E olhe que lá havia muita
coisa de qualidade reconhecida: Citroën DS e SM, Ford Landau 1977,um Volks
Sedan 1500 1970, Buick Electra 1959, um Cadillac 1949, Porsche 911 RS 1973 (de
um amigo dele, guardado por pouco tempo – mas lá esteve) e mais um ou outro possante que ele trazia para casa antes
de vender.
"Este da foto é idêntico ao que meu tio tinha, andava muito bem esse Citroën SM, o motor Maserati deixava as coisas muito interessantes" (foto: Netcarshow.com) |
"Quando criança, achava esse DS um bocado medonho; hoje, acho-o bonitinho! E como agarra nas curvas esse Citroën DS! (Foto: Wikipédia. it) |
Mas a minha fixação era saber a
razão daquele abandonado Chevrolet Sedan 1952, com pneus ressequidos e
demasiadamente murchos, envolto por um encerado de caminhão, estar ali em meio
aos maravilhosos automóveis.
"Este era o motivo da minha dúvida, o Chevrolet 1952 que dormia perenemente na garagem do meu tio" (Foto: Chevy Old Car Manual Project. com) |
Aos meus olhos de jovem
entusiasta, todos os carros daquela garagem tinham muito mais valor
do que aquele velho e empoeirado Chevrolet; por mim, claro, venderia o velho
sedã para poder trazer um Passat TS novinho, ou, sonhando muito alto, um Puma
GTB preto, carros capazes de fazer melhor uso do espaço, à parte o fato de, por
vez ou outra, dar umas voltas no carro do tio...
"Quando tinha meus 16/18 anos, este era o meu sonho sobre rodas: Puma GTB S2 1979" (Foto: Puma Classic. com) |
Nesse climão de dúvida, propus
para minha mãe: “vamos falar com o tio Carlos para ele se livrar do Chevrolet ’52,
assim ele ganha mais espaço e...”. A
frase não foi concluída, pois a minha mãezinha interviu secamente: “jamais diga
isso, aquele carro é muito importante para ele”.
Minha mãe é um doce de pessoa, em
raras situações ela me responderia tão dura e secamente, a não ser que falasse
uma grande besteira; e se eu fosse um pouco mais sensato, terminaria a conversa
ali mesmo. Mas a curiosidade é um bichinho dos mais irrequietos, a mordida coça
muito, não nos deixa esquecer-se das coisas... Deixei, então, com muito custo, a
a pergunta para o momento oportuno.
Costumava ir aos finais de semana
na casa do tio Carlos, gostava de vê-lo mexendo nos motores e nas suas tralhas.
Bastava pedalar por vinte minutos e lá estava a bela casa dele.
Ele era médico-cirurgião, nas
poucas horas livres respirava gasolina. Dirigia desde os 10 anos de idade, aos
16 comprou o seu primeiro carro e desde então não andou mais a pé. Andou muito
de moto (aliás, ele sempre fala “motocicleta”, a ele não agrada o termo
“moto”), até levar um terrível tombo, lá em 1976, quando quebrou a perna seriamente
(inclusive com sequelas no joelho) e parou de guiar veículos com menos de quatro rodas.
Bem, tio Carlos vivia sozinho, era
namorador, esteticamente compunha uma improvável mistura de Marlon Brando e
Clark Gable, mas era essencialmente sozinho. Nas raras conversas familiares
sobre o assunto, descobri que ele era viúvo, minha tia foi uma linda mulher, se
foi muito jovem e meu tio jamais conseguiu superar a perda.
Sim, ele era simpático, alegre e
sociável, mas um homem um tanto quanto fechado, talvez seco. Tanto era assim
que eu, ao perguntar para ele sobre o Chevrolet, recebi um monossilábico “um
dia eu te conto” e um aceno com a mão, convite indeclinável para sair da
garagem e tomar o rumo da rua, onde estava um Opala 1975 recém-comprado que
iríamos avaliar.
No outro dia, ao voltar da aula,
uma surpresa me aguardava. Era uma incógnita em forma de envelope, sem
remetente ou destinatário,. Mais que depressa tratei de ver o que era – e do
invólucro saíram algumas laudas datilografadas, espaço simples, sem erros
tipográficos.
A assinatura entregava: era do
meu Tio, a mesma letra que ornava os cartões de Natal e os bilhetes do
dia-a-dia. A história que ele me contou era esta:
“São Paulo, 27 de agosto de 1979.
César,
A atividade de vender automóveis para mim surgiu como meio para ter uma
fonte de renda durante o tempo em que cursava a faculdade. Meu desejo sincero,
posteriormente realizado, era de ser médico – e eu, interiorano, precisava de
dinheiro para me manter na Capital do Estado.
Não desejava uma vida de faraó, pois me acostumei com a vida simples e
pacata do campo; mas, admito que uma fonte de renda não se despreza, como
ensinava um velho tio meu, desgraçadamente avaro, morto aos oitenta anos,
deixando aos seus herdeiros uma generosa soma de propriedades e títulos, além
de um puído colchão que escondia cem contos de réis...
Com capital modesto, comecei vendendo os sedãs desprezados pela capital
e valorizados no interior. O Chevrolet 1939, chapa grossa e motor robusto, era muito
procurados. O Ford 1937 também era muito apreciado. Aliás, para ser honesto,
qualquer carro razoavelmente novo e em honesto estado de conservação vendia
muito bem – e assim fui reforçando as minhas finanças, permitindo-me viver com
um salário bastante razoável.
Apesar de ter me formado médico em 1951, não consegui viver longe da
minha agência. Pensei em vendê-la depois de abrir meu consultório, mas os
amigos me convenceram do contrário: afinal, empregava cinco excelentes
funcionários – cinco famílias se mantinham com aquilo tudo – e uma fonte de
renda nunca se despreza...
Em 1954, três anos após a minha formatura, seguia firme nessa “vida
dupla”, tanto como médico-cirurgião quanto “proprietário-vendedor-auxilar-contador-zelador-contínuo”
da minha loja. Tempos duros, trabalhava arduamente, mas o esforço era
generosamente compensado.
Eu me gabava – e ainda me gabo – de nunca ter feito sujeira na minha
loja, de nunca ter logrado ninguém, quer seja em preço quanto ao produto
vendido. Havia quem colocasse areia na transmissão para abafar ruídos, óleo exageradamente
viscoso para mascarar falta de compressão nos cilindros do motor – e o golpe
mais comum, o de retroceder, com muita generosidade, os quilômetros do
hodômetro. Jamais fiz isso, de modo que as minhas (poucas) horas de sono sempre
foram muito tranquilas.
Mesmo com uma loja eficiente e competente, a vigilância, em certa
ocasião, falhou terrivelmente. Foi com um Chevrolet 1952, um Styleline Special
4-door imaculadamente preto, comprado de seu primeiro dono, um motorista tão
inábil quanto desleixado: ao tentar regular o carburador do seu possante, o
sujeito conseguiu espanar os delicados parafusos da peça, desregulando
completamente o motor e estragando irremediavelmente a carburação.
"Este era o portfólio da Chevrolet para o ano de 1952. O conversível era bem interessante" (Foto: Curbsideclassics) |
Ele me vendeu o Chevrolet com esta ressalva; sabíamos, de antemão, que
o carro estava desarranjado, motor asmático, padecendo de uma “tosse comprida”,
transmitindo vigorosos trancos ao menor toque do acelerador. E antevendo
maiores problemas, trouxe o adoentado até à garagem da revenda, deixando-o aos
cuidados do Nino, rotundo mecânico italiano, tão grande quanto habilidoso,
diga-se.
Aliás, falando no saudoso Nino, (pena que você não o conheceu) há até
hoje quem jure que ele seria capaz de consertar a Apolo 11 com apenas uma chave
de fenda e um alicate de bico fino, sem o desajeitado traje espacial mesmo no
Espaço, caso fosse necessário.
Mas, como escrevi, um pequeno erro aconteceu naquele dia. Num problema
de comunicação (não que Nino falasse pouco – o homem falava com notável
regularidade), o Chevrolet foi dado como reparado sem efetivamente ser, e então
ele foi lavado, encerado, polido até a exaustão e repassado ao stand.
E um cliente, que tinha chegado num claustrofóbico Ford Anglia 1949,
ficou deslumbrado com o sedã de chaparia tão preta quanto uma noite sem luar –
e levou-o para casa, deixando o pequeno Anglia como parte do pagamento.
"Para mim, o Anglia é o 'Topolino da Ford', nascido para o pós-guerra (Foto: Philseed.com) |
No outro dia, querendo andar no Chevy ’52, perguntei ao Nino se o
carro estava pronto. Antes que o mecânico articulasse alguma sílaba (fleumático,
ele tinha o hábito de inflar os pulmões antes de falar algo de subida
importância), Geraldo, amigo-gerente, vem me chamar com cara de moleque
travesso: “Carlos, acho que fiz besteira”.
Sim, ele fez: vendeu o carro errado para o senhor do Anglia, e o homem
estava irritadíssimo ao telefone. Fui falar com o freguês, e notei, sem muito
esforço, a imensa insatisfação do novo dono do Chevrolet.
Pelo telefone, o Sr. Rossi (um italiano recentemente radicado no
Brasil, pelo que percebi do sotaque) me lançou pragas terríveis, maculou a
honra da minha santa mãe e de todos os meus antepassados, duvidando, inclusive,
da virilidade do meu pai. O ruim é que o homem articulava as palavras de modo
rápido, aos borbotões, alternando ofensas de médio calibre com o relato dos
soluços do carro, mal deu tempo de dizer algo.
Aliás, só consegui pronunciar quatro frases durante os dez minutos de
ligação: “desculpe, senhor”, “minha mãe não tem culpa neste acontecido e meu
pai é tão homem quanto eu”, “amanhã mesmo eu providenciarei os reparos
necessários” e “até mais ver”. Quando pousei o telefone no gancho, procurei
Geraldo para conversar amistosamente (ele era meu amigo, homem de confiança
total, mas eu precisava impedir que isso tornasse a ocorrer), ele não estava,
lembrou-se subitamente de um compromisso “logo ali” e “voltava logo”...
Ocupado com os meus compromissos de médico, não recepcionei o cliente
no dia seguinte – sim, ele fez questão de ir se desculpar pelo trato pouco
lhano; mas o Manoel, o gentil vendedor da nossa loja, contou que o homem estava
mais calmo com a solução do problema. E devolvemos a ele o Anglia até que o
seis cilindros do Chevrolet roncasse como um digno motor de Rolls Royce.
Nino se empenhou até tarde, chegou a levar bronca da esposa pelo
regresso tardio em casa (um álibi sempre utilizado, pelo que ele nos contava
nos raros momentos de folga), mas o resultado foi primoroso. O lustroso sedã
estava curado de uma “carburadorite crônica” e poderia ser devolvido ao dono
sem medo de passar outra vergonha – e sem suportar o risco de levarmos uma surra
do enraivecido sujeito.
No outro dia o carro ficou pronto, mas ninguém poderia levá-lo: Nino
estava ocupado com um enigmático motor Rocket de um Oldsmobile; Geraldo estava
na maternidade, sua mulher deu-lhe a primeira filha; César, o
contínuo, estava tentando ajudar o neurastênico Nino na solução do bendito
Rocket enguiçado; Manoel tinha de ficar no front de vendas – e sobrou para este
que vos escreve levar o carro à casa do cliente.
"Esta é a linha Olds' 1959. Meu tia preferia os Chevrolet e o Buick Electra" (Foto: Oldcaradversting.com). |
Anotei o endereço, era de uma interessante região de São Paulo, o
bairro da Aclimação, hoje mais nobre do que era. E muito mais poluído e
caótico, claro.
Lembro-me de que estava um tanto contrafeito por ter de procurar um
endereço desconhecido, num carro recém-liberado pelo mecânico, antevendo o demorado
sermão que levaria do cliente. O plantão da noite anterior me deixou muito
esgotado, de modo que meu estado de ânimo não era dos mais inspirados.
Mesmo assim, dei a “volta olímpica” ao redor do Sedan, e como tudo
estava em ordem embarquei, bati o arranque e os seis cilindros acordaram no
ato, cheios de vida, carburador novo e meticulosamente regulado.
Chamei a primeira marcha e ela compareceu alegremente para o serviço. A
embreagem, macia como manteiga, colaborou também - e acelerei de mansinho,
saindo fleumaticamente com o Chevrolet. Que carro bom de guiar, macio, caixa
boa, freios bem razoáveis, suspensão honesta e motor torcudo.
Era um dia belíssimo, céu de um azul imaculado, quase calor naquela
manhã de outubro. Eram umas dez e pouco da manhã, e, enquanto guiava, meditava
nas coisas mais simples da vida, pensando em como voltaria para oficina, onde
almoçaria e como reagiria se o cliente exigisse que o negócio fosse desfeito.
Lembro-me de ter tomado por duas vezes o rumo errado, tanto que tive
parar num boteco, tomar um guaraná e perguntar de uma tal “Rua das Flores”, nº
20. O carteiro da região, que estava na quinta ou sexta “última-dose”, após
tomar num súbito gole o que restava da cachaça do copo, disse que sabia o
endereço, era a mesmo a Rua das Flores, a do seu Rossi. Ao consultar o meu
papel, os caracteres disformes do meu contínuo não me apontavam com muita
certeza o nome da rua, mas deveria ser essa. Tinha de ser.
Levemente sóbrio, o solícito carteiro me pediu a caneta emprestada e um
papel ao merceeiro (era um boteco, mas à porta tinha uma tabuleta pendurada
“Mercearia Miramar”), e me elaborou um mapa tortuoso, linhas obliquas que me
levariam à residência do irritado freguês. Um colega de copo, mais sóbrio,
ratificou as informações: era lá onde morava o tão falado cliente.
Agradeci, paguei mais uma dose aos novos colegas (o carteiro me abraçou
vivamente, jurou fidelidade eterna por eu ter lhe pago mais um trago), e voltei
o Chevrolet. Rodando devagar, levantando uma formidável quantidade de poeira,
segui o arremedo de mapa, fiz curvas à esquerda e à direita, passei pelo posto
de polícia e pelo ponto de ônibus – e eis que chego à Rua das Flores, assim
chamada porque florida, lindamente ajardinada, tão bela quanto distante da
minha loja.
Estacionei na frente da casa, e mais que rapidamente desembarquei. A
rua era larga e pacata, calçada de paralelepípedos recém-assentados, a julgar
pela areia espalhada pela via. Velhas senhoras paravam a sua conversa para me
ver abotoar o paletó, duas crianças jogavam futebol, pespegando chutes
ameaçadores naquela velha bola de capotão, pesada como chumbo, quebraria uma
vidraça do carro... Fiz cara de bravo, ameacei reclamar e os meninos foram
embora, trataram de brincar longe dos flancos do encerado Chevrolet.
Notei que a rua formava uma interessante vila, de casas muito parecidas
e de desenho esmerado. Uma autêntica vila francesa, daquelas que lia em
revistas importadas que eventualmente paravam em minhas mãos, cortesia de uma
velha tia reumática, francófila até a raiz dos cabelos encanecidos.
A casa número 20, do seu Rossi, era especialmente bela, imaculadamente
branca, com linhas simples e com um pequeno alpendre na frente. Construída nos
anos 30, tinha janelas grandes, pintadas em um vivo azul marinho, que compunham
um visual agradável. Do jardim da frente brotavam um variado sortimento de
flores, caleidoscópio de cores e de aromas, espetáculo primaveril. Quase
consigo sentir o cheiro daquelas rosas enquanto escrevo para você estas
linhas...
Lembro que bati palmas até quase esfolar as mãos; só parei quando apareceu
um rapazola com uniforme do colégio, camisa muito engomada, gravata borboleta
algo apertada, calças curtas e um sapato muito lustroso. Sobressaltado com a
minha presença (eu era um estranho, reconheço), disse a ele quem era e a que
vinha. Mostrei-lhe as chaves do carro, balançando-as no ar como se fosse um
pequeno sino.
O rapazinho, Luigi era o nome dele, fez uma expressão muito grave,
talvez pomposa, e me convidou para entrar. Disse que o pai não tardaria a
chegar, e que a mãe dele poderia me receber.
Antes que pudesse guardar as chaves no bolso, me lembrei de um velho
conselho do meu pai “se fores à casa de um cavalheiro – e só a sua senhora
estiver na casa, espere na rua até que ele volte; manda a prudência que o dono
da casa apresente o imóvel e aos seus” e preferi os jardins do alpendre.
Meu pai não era machista, ao contrário! É que ele, quando candidato a
vereador, teve a triste ideia de fazer política na casa de importante figurão –
e ele ficou muito zangado ao ver a animada conversa do meu genitor com a
simpática senhora, a ponto de expulsar meu velho sob a mira de uma garrucha. Não
fosse velha a munição, meu pai teria sérios problemas ao lidar com a formidável
quantidade de chumbo que entraria em íntimo contato com os seus miolos...
Por essas e outras preferi o jardim, e nele fui recebido pela amável
anfitriã, a senhora Rossi. Disse-me que o dono da casa saiu para resolver
pequeno problema em uma das casas da belíssima vila (ele era dono de tudo
aquilo, pelo que deduzi naquele instante) e não tardaria.
Nesta altura dos acontecimentos, o relógio marcava algo perto das onze
e vinte da manhã, e pude sentir o agradável cheiro do almoço que fervia nas
panelas – logo, nada mais natural do que deixar a simpática anfitriã cuidar da pasta e me deixar ali mesmo, sem maiores cerimônias.
Além do mais, não seria nem um pouco desagradável ser convidado para dividir
aquele almoço de cheiro tão promissor...
Sem a Dona Rossi, aliás, fiquei muito à vontade, mesmo sabendo que o
Luigi me espiava pela fresta da janela, talvez com medo de que eu que pisasse
nos canteiros e arruinasse a grama verde que crescia viçosa, ou, pior ainda roubasse
a sua cintilante bicicletinha nova.
"Se eu fosse criança naquela época, amolaria a paciência dos meus pais até que eles me desses uma destas, Peugeot Balonete - e você acha que a Peugeot só fazia automóveis? (Foto:bikeveiaklub) |
Dentre as muitas belezas daquele jardim, deixei-me contemplar por uma
rama de rosas-mosqueta, aliás, as mesmas que a minha mãe cultivava. Pela
primeira vez em muito tempo, lembrei-me da infância, das traquinagens de
moleque pequeno, de como era feliz e sabia, e todas estas recordações fáceis
que nos ocorrem nestes momentos.
Antes que eu pensasse em mais alguma coisa, apareceu uma senhorita. Não,
uma bela senhorita. Melhor, uma musa renascentista em pessoa, anja em carne e
osso. A mais deslumbrante mulher que jamais tinha visto na vida.
Era uma bela mulher de metro e setenta, melenas negras cobertas por um
lenço igualmente preto, mas com bolinhas brancas; aliás, vestia-se à moda da
época, mas com muita graça e simplicidade.
O rosto dela tinha traços suaves, agradabilíssimo, nariz levemente
arrebitado (charmosissímo, por sinal), malares altos encimados por um
deslumbrante par de esmeraldas, olhos verdes brilhosos e aguçados. Moldura
perfeita: um sorriso franco e luminoso. E uma voz doce, canto de sereia, a
entoar algumas palavras para mim, à esta altura já completamente apaixonado:
– “Então o senhor vendeu o carro
para o meu pai?”, perguntou docemente a anja materializada. Respondi
afirmativamente, com gestos rápidos e atrapalhados, gaguejando algumas palavras,
pois fiquei em perfeito estupor ao vê-la – seria impossível ser indiferente à
ela, garanto.
- “Gosta de rosas?”, perguntou-me. “Elas me lembram da infância,
principalmente estas rosas-mosqueta, meu pai as plantava para minha mãe”,
respondi, mais refeito.
Antes que pudesse falar algo a mais, ela espalmou a mão direita para
mim, dedos delicados e finos, certamente de exímia pianista. Era um franco
sinal para que eu esperasse. E eu esperei, esperaria até a eternidade, caso
fosse.
Mas o ponteiro que marca os segundos do meu Seamaster não deu duas voltas completas e ela
reapareceu com um vaso nas mãos. Delicadamente, juntou terra do jardim, fez uma
cama para acomodar as sementes – e ergue-o, sorriso mais radioso deste mundo, e
me presenteia com o vaso.
“Puxa vida”, pensei, “nem tem dez minutos que ela me conhece e já me
deu um belo presente!”.
Quando estendi as mãos para segurar o vaso, houve o natural toque de
mãos, e pude sentir o toque mais cálido da minha vida, ainda tão delicado quanto
a mais pura seda. Ao olhar fixamente para os olhos dela, vi que aquelas
esmeraldas eram o farol da minha vida. E tive a redobrada certeza de que aquela
não seria a última vez que nos veríamos.
Por conta do Chevrolet, meu sobrinho, conheci a mulher da minha vida.
Tive de arranjar os maiores pretextos para tornar à casa do Seu Gianni Rossi,
escudado na maior desfaçatez desse mundo, mas, sempre que possível, tornei à
Rua das Flores, para ver a minha maior flor, Margarida.
Sim, era a sua tia, Margarida, tão bela quanto a flor, tão frágil
quanto. Fomos intensamente felizes, casamos e aquelas esmeraldas me iluminaram
por anos a fio. Até que um dia a luz se foi, apagada por uma bruma de tristeza,
arrebatada que foi pela morte, influxo egoísta dos Céus, que, ao se aperceberem
da angelitude de sua tia, levaram-na embora.
Fiquei eu, então, juntando os retalhos da vida, pequenos pedaços de
lembrança, recompostos diariamente. Ao ver o Chevrolet, quase posso ouvir a voz
dela naquele dia, ou lembrar os momentos felizes que passamos a bordo deste
importante sedan.
Por isso, meu sobrinho, mesmo dezoito anos depois de ela ter partido,
eu mantenho o carro como estava no dia em que ela nos deixou. Pois ainda sinto,
com inquebrantável certeza, de que ela ainda aparecerá pela porta da cozinha,
linda e risonha, gritando o meu nome e me convidando para ir a Santos.
Se eu pudesse, trocaria tudo, o mundo todo, só para tê-la novamente em
meus braços, uma vez que fosse. Como não posso, deixe o Chevrolet onde está. É lembrança boa de tempos
idos, e deixemo-lo assim”.
Ao ler a carta, não nego, fiquei
com os olhos marejados. Passei a respeitar o Chevrolet do meu tio, porquanto
guardei a lição de que um automóvel, por mais que seja apenas um objeto,
consegue guardar tantas lembranças felizes – como se máquina do tempo fosse.
E compreendi o motivo pelo qual
meu tio, apesar de totalmente desligado dos assuntos de decoração e paisagismo,
cuidava tanto daquelas belas rosas-mosqueta que cresciam nos jardins da casa
dele...
Caí nesse blog por acaso, ao pesquisar sobre Landau (já tive um) e Oldsmobile (tenho um Cutlass 1968). E acabei por ler este maravilhoso relato. Que história linda e triste... lendo, eu pude sentir cada detalhe; da alegria à tristeza. E entendi, de forma plena, cada sentimento contido nela. Muito bom. Excelente mesmo.
ResponderExcluirAgradeço, empenhado, os elogios e fico feliz que tenhas gostado do texto. Volta e meia escrevo algo para passar o tempo e não sei bem ao certo a razão pela qual publiquei o texto, mas fico feliz, de verdade, por você ter gostado.
ExcluirE parabéns pelo Cutlass, é um dos carros mais interessantes da Oldsmobile, deve ser uma delícia acelerar fundo e ouvir a sinfonia que fica embaixo do motor.
Grato pelo comentário e pela visita!