domingo, 25 de maio de 2014

Crônica automotora: "O Chevrolet do meu tio"



Como forma de comemorar as mais de trinta mil visitas ao meu modesto blog (reconheço que umas 800 são minhas), inauguro, hoje, um novo espaço, uma nova forma de veicular conteúdo neste espaço, até para honrar o título que orna esta página.
 Obviamente, não tenho pretensões de escrever textos muito bons; mesmo assim, compartilho com vocês, com o ardente desejo de que meus escritos não os farão dormir, uma pequena história sobre um Chevrolet 1952:

O Chevrolet do meu Tio

Eu tinha dezesseis anos, e me lembro se fosse hoje. Num canto obscuro da garagem do meu tio, amplo espaço que desde sempre foi atulhado de carros, móveis, guardados e uma infinidade de peças e ferramentas, um carro sempre me chamou a atenção. E olhe que lá havia muita coisa de qualidade reconhecida: Citroën DS e SM, Ford Landau 1977,um Volks Sedan 1500 1970, Buick Electra 1959, um Cadillac 1949, Porsche 911 RS 1973 (de um amigo dele, guardado por pouco tempo – mas lá esteve) e mais um ou outro possante que ele trazia para casa antes de vender.

"Este da foto é idêntico ao que meu tio tinha, andava muito bem esse Citroën SM, o motor Maserati deixava as coisas muito interessantes" (foto: Netcarshow.com)

"Quando criança, achava esse DS um bocado medonho; hoje, acho-o bonitinho! E como agarra nas curvas esse Citroën DS! (Foto: Wikipédia. it)
Mas a minha fixação era saber a razão daquele abandonado Chevrolet Sedan 1952, com pneus ressequidos e demasiadamente murchos, envolto por um encerado de caminhão, estar ali em meio aos maravilhosos automóveis. 

"Este era o motivo da minha dúvida, o Chevrolet 1952 que dormia perenemente na garagem do meu tio" (Foto: Chevy Old Car Manual Project. com)
Aos meus olhos de jovem entusiasta, todos os carros daquela garagem tinham muito mais valor do que aquele velho e empoeirado Chevrolet; por mim, claro, venderia o velho sedã para poder trazer um Passat TS novinho, ou, sonhando muito alto, um Puma GTB preto, carros capazes de fazer melhor uso do espaço, à parte o fato de, por vez ou outra, dar umas voltas no carro do tio...

"Quando tinha meus 16/18 anos, este era o meu sonho sobre rodas: Puma GTB S2 1979" (Foto: Puma Classic. com)
 Nesse climão de dúvida, propus para minha mãe: “vamos falar com o tio Carlos para ele se livrar do Chevrolet ’52, assim ele ganha mais espaço e...”. A frase não foi concluída, pois a minha mãezinha interviu secamente: “jamais diga isso, aquele carro é muito importante para ele”. 

Minha mãe é um doce de pessoa, em raras situações ela me responderia tão dura e secamente, a não ser que falasse uma grande besteira; e se eu fosse um pouco mais sensato, terminaria a conversa ali mesmo. Mas a curiosidade é um bichinho dos mais irrequietos, a mordida coça muito, não nos deixa esquecer-se das coisas... Deixei, então, com muito custo, a a pergunta para o momento oportuno. 
 
Costumava ir aos finais de semana na casa do tio Carlos, gostava de vê-lo mexendo nos motores e nas suas tralhas. Bastava pedalar por vinte minutos e lá estava a bela casa dele. 

Ele era médico-cirurgião, nas poucas horas livres respirava gasolina. Dirigia desde os 10 anos de idade, aos 16 comprou o seu primeiro carro e desde então não andou mais a pé. Andou muito de moto (aliás, ele sempre fala “motocicleta”, a ele não agrada o termo “moto”), até levar um terrível tombo, lá em 1976, quando quebrou a perna seriamente (inclusive com sequelas no joelho) e parou de guiar veículos com menos de quatro rodas.

Bem, tio Carlos vivia sozinho, era namorador, esteticamente compunha uma improvável mistura de Marlon Brando e Clark Gable, mas era essencialmente sozinho. Nas raras conversas familiares sobre o assunto, descobri que ele era viúvo, minha tia foi uma linda mulher, se foi muito jovem e meu tio jamais conseguiu superar a perda.

Sim, ele era simpático, alegre e sociável, mas um homem um tanto quanto fechado, talvez seco. Tanto era assim que eu, ao perguntar para ele sobre o Chevrolet, recebi um monossilábico “um dia eu te conto” e um aceno com a mão, convite indeclinável para sair da garagem e tomar o rumo da rua, onde estava um Opala 1975 recém-comprado que iríamos avaliar.

"O Opala que me aguardava no pátio era exatamente igual a este, um modelo básico, mas com motor de seis cilindros, carro bastante divertido - meu tio gostava muito dos carros com transmissão na coluna de direção" (foto: Quatro-Rodas, via Amigos do Opala.com)
No outro dia, ao voltar da aula, uma surpresa me aguardava. Era uma incógnita em forma de envelope, sem remetente ou destinatário,. Mais que depressa tratei de ver o que era – e do invólucro saíram algumas laudas datilografadas, espaço simples, sem erros tipográficos. 

A assinatura entregava: era do meu Tio, a mesma letra que ornava os cartões de Natal e os bilhetes do dia-a-dia. A história que ele me contou era esta:

“São Paulo, 27 de agosto de 1979.

César,

A atividade de vender automóveis para mim surgiu como meio para ter uma fonte de renda durante o tempo em que cursava a faculdade. Meu desejo sincero, posteriormente realizado, era de ser médico – e eu, interiorano, precisava de dinheiro para me manter na Capital do Estado. 

Não desejava uma vida de faraó, pois me acostumei com a vida simples e pacata do campo; mas, admito que uma fonte de renda não se despreza, como ensinava um velho tio meu, desgraçadamente avaro, morto aos oitenta anos, deixando aos seus herdeiros uma generosa soma de propriedades e títulos, além de um puído colchão que escondia cem contos de réis...

Com capital modesto, comecei vendendo os sedãs desprezados pela capital e valorizados no interior. O Chevrolet 1939, chapa grossa e motor robusto, era muito procurados. O Ford 1937 também era muito apreciado. Aliás, para ser honesto, qualquer carro razoavelmente novo e em honesto estado de conservação vendia muito bem – e assim fui reforçando as minhas finanças, permitindo-me viver com um salário bastante razoável.

"Na cidade, o Chevrolet 1939 era um táxi como tantos outros; no interior, um carro muito apreciado, extremamente robusto, perfeito para o serviço pesado e com classe suficiente para os passeios dominicais (Foto: Wikimedia)
Apesar de ter me formado médico em 1951, não consegui viver longe da minha agência. Pensei em vendê-la depois de abrir meu consultório, mas os amigos me convenceram do contrário: afinal, empregava cinco excelentes funcionários – cinco famílias se mantinham com aquilo tudo – e uma fonte de renda nunca se despreza...

Em 1954, três anos após a minha formatura, seguia firme nessa “vida dupla”, tanto como médico-cirurgião quanto “proprietário-vendedor-auxilar-contador-zelador-contínuo” da minha loja. Tempos duros, trabalhava arduamente, mas o esforço era generosamente compensado.

Eu me gabava – e ainda me gabo – de nunca ter feito sujeira na minha loja, de nunca ter logrado ninguém, quer seja em preço quanto ao produto vendido. Havia quem colocasse areia na transmissão para abafar ruídos, óleo exageradamente viscoso para mascarar falta de compressão nos cilindros do motor – e o golpe mais comum, o de retroceder, com muita generosidade, os quilômetros do hodômetro. Jamais fiz isso, de modo que as minhas (poucas) horas de sono sempre foram muito tranquilas.

Mesmo com uma loja eficiente e competente, a vigilância, em certa ocasião, falhou terrivelmente. Foi com um Chevrolet 1952, um Styleline Special 4-door imaculadamente preto, comprado de seu primeiro dono, um motorista tão inábil quanto desleixado: ao tentar regular o carburador do seu possante, o sujeito conseguiu espanar os delicados parafusos da peça, desregulando completamente o motor e estragando irremediavelmente a carburação.

"Este era o portfólio da Chevrolet para o ano de 1952. O conversível era bem interessante" (Foto: Curbsideclassics)
Ele me vendeu o Chevrolet com esta ressalva; sabíamos, de antemão, que o carro estava desarranjado, motor asmático, padecendo de uma “tosse comprida”, transmitindo vigorosos trancos ao menor toque do acelerador. E antevendo maiores problemas, trouxe o adoentado até à garagem da revenda, deixando-o aos cuidados do Nino, rotundo mecânico italiano, tão grande quanto habilidoso, diga-se.

Aliás, falando no saudoso Nino, (pena que você não o conheceu) há até hoje quem jure que ele seria capaz de consertar a Apolo 11 com apenas uma chave de fenda e um alicate de bico fino, sem o desajeitado traje espacial mesmo no Espaço, caso fosse necessário.

Mas, como escrevi, um pequeno erro aconteceu naquele dia. Num problema de comunicação (não que Nino falasse pouco – o homem falava com notável regularidade), o Chevrolet foi dado como reparado sem efetivamente ser, e então ele foi lavado, encerado, polido até a exaustão e repassado ao stand.

E um cliente, que tinha chegado num claustrofóbico Ford Anglia 1949, ficou deslumbrado com o sedã de chaparia tão preta quanto uma noite sem luar – e levou-o para casa, deixando o pequeno Anglia como parte do pagamento.

"Para mim, o Anglia é o 'Topolino da Ford', nascido para o pós-guerra (Foto: Philseed.com)
No outro dia, querendo andar no Chevy ’52, perguntei ao Nino se o carro estava pronto. Antes que o mecânico articulasse alguma sílaba (fleumático, ele tinha o hábito de inflar os pulmões antes de falar algo de subida importância), Geraldo, amigo-gerente, vem me chamar com cara de moleque travesso: “Carlos, acho que fiz besteira”.

Sim, ele fez: vendeu o carro errado para o senhor do Anglia, e o homem estava irritadíssimo ao telefone. Fui falar com o freguês, e notei, sem muito esforço, a imensa insatisfação do novo dono do Chevrolet.

Pelo telefone, o Sr. Rossi (um italiano recentemente radicado no Brasil, pelo que percebi do sotaque) me lançou pragas terríveis, maculou a honra da minha santa mãe e de todos os meus antepassados, duvidando, inclusive, da virilidade do meu pai. O ruim é que o homem articulava as palavras de modo rápido, aos borbotões, alternando ofensas de médio calibre com o relato dos soluços do carro, mal deu tempo de dizer algo.

Aliás, só consegui pronunciar quatro frases durante os dez minutos de ligação: “desculpe, senhor”, “minha mãe não tem culpa neste acontecido e meu pai é tão homem quanto eu”, “amanhã mesmo eu providenciarei os reparos necessários” e “até mais ver”. Quando pousei o telefone no gancho, procurei Geraldo para conversar amistosamente (ele era meu amigo, homem de confiança total, mas eu precisava impedir que isso tornasse a ocorrer), ele não estava, lembrou-se subitamente de um compromisso “logo ali” e “voltava logo”... 

Ocupado com os meus compromissos de médico, não recepcionei o cliente no dia seguinte – sim, ele fez questão de ir se desculpar pelo trato pouco lhano; mas o Manoel, o gentil vendedor da nossa loja, contou que o homem estava mais calmo com a solução do problema. E devolvemos a ele o Anglia até que o seis cilindros do Chevrolet roncasse como um digno motor de Rolls Royce.

Nino se empenhou até tarde, chegou a levar bronca da esposa pelo regresso tardio em casa (um álibi sempre utilizado, pelo que ele nos contava nos raros momentos de folga), mas o resultado foi primoroso. O lustroso sedã estava curado de uma “carburadorite crônica” e poderia ser devolvido ao dono sem medo de passar outra vergonha – e sem suportar o risco de levarmos uma surra do enraivecido sujeito.

No outro dia o carro ficou pronto, mas ninguém poderia levá-lo: Nino estava ocupado com um enigmático motor Rocket de um Oldsmobile; Geraldo estava na maternidade, sua mulher deu-lhe a primeira filha; César, o contínuo, estava tentando ajudar o neurastênico Nino na solução do bendito Rocket enguiçado; Manoel tinha de ficar no front de vendas – e sobrou para este que vos escreve levar o carro à casa do cliente.

"Esta é a linha Olds' 1959. Meu tia preferia os Chevrolet e o Buick Electra" (Foto: Oldcaradversting.com).
Anotei o endereço, era de uma interessante região de São Paulo, o bairro da Aclimação, hoje mais nobre do que era. E muito mais poluído e caótico, claro.

Lembro-me de que estava um tanto contrafeito por ter de procurar um endereço desconhecido, num carro recém-liberado pelo mecânico, antevendo o demorado sermão que levaria do cliente. O plantão da noite anterior me deixou muito esgotado, de modo que meu estado de ânimo não era dos mais inspirados.

Mesmo assim, dei a “volta olímpica” ao redor do Sedan, e como tudo estava em ordem embarquei, bati o arranque e os seis cilindros acordaram no ato, cheios de vida, carburador novo e meticulosamente regulado. 

Chamei a primeira marcha e ela compareceu alegremente para o serviço. A embreagem, macia como manteiga, colaborou também - e acelerei de mansinho, saindo fleumaticamente com o Chevrolet. Que carro bom de guiar, macio, caixa boa, freios bem razoáveis, suspensão honesta e motor torcudo. 
Era um dia belíssimo, céu de um azul imaculado, quase calor naquela manhã de outubro. Eram umas dez e pouco da manhã, e, enquanto guiava, meditava nas coisas mais simples da vida, pensando em como voltaria para oficina, onde almoçaria e como reagiria se o cliente exigisse que o negócio fosse desfeito. 

Lembro-me de ter tomado por duas vezes o rumo errado, tanto que tive parar num boteco, tomar um guaraná e perguntar de uma tal “Rua das Flores”, nº 20. O carteiro da região, que estava na quinta ou sexta “última-dose”, após tomar num súbito gole o que restava da cachaça do copo, disse que sabia o endereço, era a mesmo a Rua das Flores, a do seu Rossi. Ao consultar o meu papel, os caracteres disformes do meu contínuo não me apontavam com muita certeza o nome da rua, mas deveria ser essa. Tinha de ser.

Levemente sóbrio, o solícito carteiro me pediu a caneta emprestada e um papel ao merceeiro (era um boteco, mas à porta tinha uma tabuleta pendurada “Mercearia Miramar”), e me elaborou um mapa tortuoso, linhas obliquas que me levariam à residência do irritado freguês. Um colega de copo, mais sóbrio, ratificou as informações: era lá onde morava o tão falado cliente.

Agradeci, paguei mais uma dose aos novos colegas (o carteiro me abraçou vivamente, jurou fidelidade eterna por eu ter lhe pago mais um trago), e voltei o Chevrolet. Rodando devagar, levantando uma formidável quantidade de poeira, segui o arremedo de mapa, fiz curvas à esquerda e à direita, passei pelo posto de polícia e pelo ponto de ônibus – e eis que chego à Rua das Flores, assim chamada porque florida, lindamente ajardinada, tão bela quanto distante da minha loja.

Estacionei na frente da casa, e mais que rapidamente desembarquei. A rua era larga e pacata, calçada de paralelepípedos recém-assentados, a julgar pela areia espalhada pela via. Velhas senhoras paravam a sua conversa para me ver abotoar o paletó, duas crianças jogavam futebol, pespegando chutes ameaçadores naquela velha bola de capotão, pesada como chumbo, quebraria uma vidraça do carro... Fiz cara de bravo, ameacei reclamar e os meninos foram embora, trataram de brincar longe dos flancos do encerado Chevrolet.

Notei que a rua formava uma interessante vila, de casas muito parecidas e de desenho esmerado. Uma autêntica vila francesa, daquelas que lia em revistas importadas que eventualmente paravam em minhas mãos, cortesia de uma velha tia reumática, francófila até a raiz dos cabelos encanecidos.
A casa número 20, do seu Rossi, era especialmente bela, imaculadamente branca, com linhas simples e com um pequeno alpendre na frente. Construída nos anos 30, tinha janelas grandes, pintadas em um vivo azul marinho, que compunham um visual agradável. Do jardim da frente brotavam um variado sortimento de flores, caleidoscópio de cores e de aromas, espetáculo primaveril. Quase consigo sentir o cheiro daquelas rosas enquanto escrevo para você estas linhas...

Lembro que bati palmas até quase esfolar as mãos; só parei quando apareceu um rapazola com uniforme do colégio, camisa muito engomada, gravata borboleta algo apertada, calças curtas e um sapato muito lustroso. Sobressaltado com a minha presença (eu era um estranho, reconheço), disse a ele quem era e a que vinha. Mostrei-lhe as chaves do carro, balançando-as no ar como se fosse um pequeno sino.

O rapazinho, Luigi era o nome dele, fez uma expressão muito grave, talvez pomposa, e me convidou para entrar. Disse que o pai não tardaria a chegar, e que a mãe dele poderia me receber.
Antes que pudesse guardar as chaves no bolso, me lembrei de um velho conselho do meu pai “se fores à casa de um cavalheiro – e só a sua senhora estiver na casa, espere na rua até que ele volte; manda a prudência que o dono da casa apresente o imóvel e aos seus” e preferi os jardins do alpendre.

Meu pai não era machista, ao contrário! É que ele, quando candidato a vereador, teve a triste ideia de fazer política na casa de importante figurão – e ele ficou muito zangado ao ver a animada conversa do meu genitor com a simpática senhora, a ponto de expulsar meu velho sob a mira de uma garrucha. Não fosse velha a munição, meu pai teria sérios problemas ao lidar com a formidável quantidade de chumbo que entraria em íntimo contato com os seus miolos...

Por essas e outras preferi o jardim, e nele fui recebido pela amável anfitriã, a senhora Rossi. Disse-me que o dono da casa saiu para resolver pequeno problema em uma das casas da belíssima vila (ele era dono de tudo aquilo, pelo que deduzi naquele instante) e não tardaria.

Nesta altura dos acontecimentos, o relógio marcava algo perto das onze e vinte da manhã, e pude sentir o agradável cheiro do almoço que fervia nas panelas – logo, nada mais natural do que deixar a simpática anfitriã cuidar da pasta e me deixar ali mesmo, sem maiores cerimônias. Além do mais, não seria nem um pouco desagradável ser convidado para dividir aquele almoço de cheiro tão promissor...
Sem a Dona Rossi, aliás, fiquei muito à vontade, mesmo sabendo que o Luigi me espiava pela fresta da janela, talvez com medo de que eu que pisasse nos canteiros e arruinasse a grama verde que crescia viçosa, ou, pior ainda roubasse a sua cintilante bicicletinha nova. 

"Se eu fosse criança naquela época, amolaria a paciência dos meus pais até que eles me desses uma destas, Peugeot Balonete - e você acha que a Peugeot só fazia automóveis? (Foto:bikeveiaklub)
Dentre as muitas belezas daquele jardim, deixei-me contemplar por uma rama de rosas-mosqueta, aliás, as mesmas que a minha mãe cultivava. Pela primeira vez em muito tempo, lembrei-me da infância, das traquinagens de moleque pequeno, de como era feliz e sabia, e todas estas recordações fáceis que nos ocorrem nestes momentos.

Antes que eu pensasse em mais alguma coisa, apareceu uma senhorita. Não, uma bela senhorita. Melhor, uma musa renascentista em pessoa, anja em carne e osso. A mais deslumbrante mulher que jamais tinha visto na vida.

Era uma bela mulher de metro e setenta, melenas negras cobertas por um lenço igualmente preto, mas com bolinhas brancas; aliás, vestia-se à moda da época, mas com muita graça e simplicidade.

O rosto dela tinha traços suaves, agradabilíssimo, nariz levemente arrebitado (charmosissímo, por sinal), malares altos encimados por um deslumbrante par de esmeraldas, olhos verdes brilhosos e aguçados. Moldura perfeita: um sorriso franco e luminoso. E uma voz doce, canto de sereia, a entoar algumas palavras para mim, à esta altura já completamente apaixonado:

 – “Então o senhor vendeu o carro para o meu pai?”, perguntou docemente a anja materializada. Respondi afirmativamente, com gestos rápidos e atrapalhados, gaguejando algumas palavras, pois fiquei em perfeito estupor ao vê-la – seria impossível ser indiferente à ela, garanto.

- “Gosta de rosas?”, perguntou-me. “Elas me lembram da infância, principalmente estas rosas-mosqueta, meu pai as plantava para minha mãe”, respondi, mais refeito.

Antes que pudesse falar algo a mais, ela espalmou a mão direita para mim, dedos delicados e finos, certamente de exímia pianista. Era um franco sinal para que eu esperasse. E eu esperei, esperaria até a eternidade, caso fosse.

Mas o ponteiro que marca os segundos do meu Seamaster não deu duas voltas completas e ela reapareceu com um vaso nas mãos. Delicadamente, juntou terra do jardim, fez uma cama para acomodar as sementes – e ergue-o, sorriso mais radioso deste mundo, e me presenteia com o vaso.
“Puxa vida”, pensei, “nem tem dez minutos que ela me conhece e já me deu um belo presente!”. 

Quando estendi as mãos para segurar o vaso, houve o natural toque de mãos, e pude sentir o toque mais cálido da minha vida, ainda tão delicado quanto a mais pura seda. Ao olhar fixamente para os olhos dela, vi que aquelas esmeraldas eram o farol da minha vida. E tive a redobrada certeza de que aquela não seria a última vez que nos veríamos.

Por conta do Chevrolet, meu sobrinho, conheci a mulher da minha vida. Tive de arranjar os maiores pretextos para tornar à casa do Seu Gianni Rossi, escudado na maior desfaçatez desse mundo, mas, sempre que possível, tornei à Rua das Flores, para ver a minha maior flor, Margarida.

Sim, era a sua tia, Margarida, tão bela quanto a flor, tão frágil quanto. Fomos intensamente felizes, casamos e aquelas esmeraldas me iluminaram por anos a fio. Até que um dia a luz se foi, apagada por uma bruma de tristeza, arrebatada que foi pela morte, influxo egoísta dos Céus, que, ao se aperceberem da angelitude de sua tia, levaram-na embora.

Fiquei eu, então, juntando os retalhos da vida, pequenos pedaços de lembrança, recompostos diariamente. Ao ver o Chevrolet, quase posso ouvir a voz dela naquele dia, ou lembrar os momentos felizes que passamos a bordo deste importante sedan.

Por isso, meu sobrinho, mesmo dezoito anos depois de ela ter partido, eu mantenho o carro como estava no dia em que ela nos deixou. Pois ainda sinto, com inquebrantável certeza, de que ela ainda aparecerá pela porta da cozinha, linda e risonha, gritando o meu nome e me convidando para ir a Santos.

Se eu pudesse, trocaria tudo, o mundo todo, só para tê-la novamente em meus braços, uma vez que fosse. Como não posso, deixe o Chevrolet onde está. É lembrança boa de tempos idos, e deixemo-lo assim”.
Ao ler a carta, não nego, fiquei com os olhos marejados. Passei a respeitar o Chevrolet do meu tio, porquanto guardei a lição de que um automóvel, por mais que seja apenas um objeto, consegue guardar tantas lembranças felizes – como se máquina do tempo fosse. 

E compreendi o motivo pelo qual meu tio, apesar de totalmente desligado dos assuntos de decoração e paisagismo, cuidava tanto daquelas belas rosas-mosqueta que cresciam nos jardins da casa dele...

2 comentários:

  1. Caí nesse blog por acaso, ao pesquisar sobre Landau (já tive um) e Oldsmobile (tenho um Cutlass 1968). E acabei por ler este maravilhoso relato. Que história linda e triste... lendo, eu pude sentir cada detalhe; da alegria à tristeza. E entendi, de forma plena, cada sentimento contido nela. Muito bom. Excelente mesmo.

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    1. Agradeço, empenhado, os elogios e fico feliz que tenhas gostado do texto. Volta e meia escrevo algo para passar o tempo e não sei bem ao certo a razão pela qual publiquei o texto, mas fico feliz, de verdade, por você ter gostado.

      E parabéns pelo Cutlass, é um dos carros mais interessantes da Oldsmobile, deve ser uma delícia acelerar fundo e ouvir a sinfonia que fica embaixo do motor.

      Grato pelo comentário e pela visita!

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